sábado, 31 de maio de 2008

Memórias

Ontem foi dia de Tertúlia do Clube dos Leitores Sem Tempo, com o tema "Histórias e Memórias".
Uma das tertulianas leu um texto que me fez recuar largos anos. Um vinil oferecido . A voz suave e timbrada de Rui de Carvalho. Ouvido vezes sem conta. Depois guardado no baú da vida.
DESIDERATA

Vai serenamente por entre a agitação e a pressa e lembra-te da paz que pode haver no silêncio. Sem seres subserviente, mantêm-te, tanto quanto possível, em boas relações com todos. Diz a tua verdade calma e claramente e escuta com atenção os outros, mesmo que menos dota­dos e ignorantes; também eles têm a sua história. Evita as pessoas barulhentas e agressivas; são mortificações para o espírito. Se te comparas com os outros podes tornar-te presunçoso e melancólico porque haverá sempre pessoas superiores e inferiores a ti. Apraz-te com as tuas realiza­ções tanto como com os teus planos. Põe todo o interesse na tua carreira ainda que ela seja humilde; é um bem real nos destinos mutáveis do tempo. Usa de prudência nos teus negócios porque o mundo está cheio de astúcia; mas que isto não te cegue a ponto de não veres virtude onde ela existe; muitas pessoas lutam por altos ideais e em todo o lado a vida está cheia de heroísmo. Sê fiel a ti mesmo. Sobretudo não simules afeição nem sejas cínico em relação ao amor porque, em face da aridez e do desen­canto, ele é perene como a relva. Toma amavelmente o conselho dos mais idosos, renunciando com graciosidade às ideias da juventude. Educa a fortaleza de espírito para que te salvaguarde numa inesperada desdita. Mas não te atormentes com fantasias. Muitos receios surgem da fadiga e da solidão. Para além de uma disciplina salutar, sê gentil contigo mesmo. Tu és um filho do universo e, tal como as árvores e as estrelas, tens direito de o habitar. E quer isto seja ou não claro para ti, sem dúvida que o universo é-te disto revelador. Portanto, vive em paz com Deus seja qual for a ideia que Dele tiveres. E quaisquer que sejam as tuas lutas e aspirações, na ruidosa confusão da vida, conserva-te em paz com a tua alma. Com toda a sua falsidade, escravidão e sonhos desfeitos o mundo é ainda maravilhoso. Sê cauteloso. Luta para seres feliz.
Max Ehrmann
Tradução livre de Maria Luisa Peixoto

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Os Vizinhos

Ontem foi o Dia Europeu do Vizinho. Não estranhei, pois agora é moda haver dias para tudo e todos os gostos.
Os vizinhos já não são o que eram.
Dantes, todos se conheciam, pelo menos de vista. Podíamos sempre contar com o vizinho, que estava em casa, para nos assinar a carta registada que vinha pelo correio, para nos recolher a garrafa de gás deixada pelo distribuidor, para entregar a contagem da água ou da luz ou para ficar com os miúdos que chegavam da escola. A vizinhança era uma comunidade de ajuda. Claro que havia os “cuscos” e os mal-encarados. Os primeiros eram tratados com tolerância e ficavam só a saber o essencial de qualquer informação. Quanto aos segundos, um bom dia, às vezes nem isso, chegava. Eram os tempos das ruas de casas térreas, dos largos ou dos pátios.
Agora já quase que não há vizinhos. Há o do rés-do-chão, do 2º esquerdo, do 5º direito ou do recuado do 8º ou 9º. Saem de manhã, não vêm almoçar e geralmente chegam à noite. Os miúdos passam o dia na escola, o gás é comprado na bomba mais próxima e as leituras do gás e água enviam-se por e-mail. Aos fins-de-semana avistamo-nos nos elevadores e reconhecemo-los nos corredores dos centros comerciais. São os tempos dos blocos de apartamentos, das urbanizações, dos dormitórios.
É pena. Os vizinhos fazem-nos falta. Este Dia europeu é uma tentativa, pouco divulgada, de repor a sua importância. De trazer de volta a entreajuda e a solidariedade.

sábado, 24 de maio de 2008


25 de Maio é o Dia de África.
Celebremos esse continente assolado por cheias, secas, guerras, fomes e doenças, dando as mãos no que estiver ao nosso alcance. Ajudemos com livros para as escolas, roupas para os desalojados ou medicamentos. Divulguemos os seus escritores, os seus poetas, a sua arte, a sua música. Celebremos África com solidariedade.
Elejo, neste canto, algumas coisas belas: pintura, escultura, cerâmica e letras.




O artista mais conhecido de Moçambique, o carismático Malangatana Ngwenya foi nomeado Artista UNESCO para a Paz em 1997.
Malangatana nasceu em 1936 em Matalana, sul de Moçambique. Os seus primeiros anos de vida foram passados em Escolas de Missões e ajudando a sua mãe no trabalho no campo.
Em 1958 Malangatana frequenta o Núcleo de Arte, com o apoio do pintor Zé Júlio. No ano seguinte, Malangatana tem o seu trabalho exposto publicamente pela primeira vez numa exposição colectiva e dois anos mais tarde, realiza a sua primeira individual, com 25 anos. Em 1963 a sua poesia é publicada na revista 'Black Orpheus' e na antologia 'Modern Poetry from Africa". No ano seguinte, Valente Malangatana é preso pela polícia secreta (PIDE) e passa 18 meses na cadeia. Em 1971 recebe uma bolsa da Fundação Gulbenkian e estuda gravura e cerâmica. Desde 1981 trabalha exclusivamente como artista.
O trabalho de Malangatana projecta uma visão ousada da vida onde há uma comunhão entre homens, animais e plantas. Baseia-se na sua 'herança' mas simultaneamente abraçando símbolos de modernidade e progresso, síntese entre arte e política.
extraído de: "Contemporary Africa Database"


Travessa em cerâmica


Inácio Matsinhe nasceu em Maxixe, Moçambique em 1945. É um dos grandes nomes das artes plásticas Moçambicanas.
Fortemente ligado à sua terra natal, a sua pintura e cerâmica mostram geralmente cores vivas e quentes: encarnados, amarelos e azuis-cobalto mas também por vezes nostálgicas com amarelos e verdes.
Matsinhe expõe regularmente desde os anos 60 em todo o mundo desde Portugal e Espanha ao Reino Unido (African Center- Londres) ou aos Estados Unidos (World Surrealist Exibition - Chicago). O seu trabalho está representado em inúmeras colecções privadas mas talvez a sua obra mais emblemática seja o enorme painel de azulejos na Av. Gago Coutinho em Lisboa.
extraído de: "Cerâmica e Escultura" (2002) - C.Bajouca ; "Arte 98" (1998) - F.I. do Carmo





Nascida em 1964, Colleen Madamombe detém um papel de inspiração no movimento de escultura devido ao facto de ser uma das poucas mulheres escultoras no Zimbabué e considerada frequentemente mais importante.
O seu trabalho adiciona uma nova dimensão à complexidade da escultura em pedra no Zimbabué pelo compromisso e fidelidade a um tema. Madamombe utiliza as suas capacidades artísticas e técnicas para realçar as características das mulheres Shona, bem como para chamar a atenção para as desigualdades que afectam as suas vidas.
extraído de : "Life in Stone, Zimbabwean Sculpture", Olivier Sultan, 1994



Abias Ukuma jovem pintor Angolano

POEMA MESTIÇO
escrevo mediterrâneo
na serena voz do Índico
sangro norte
em coração do sul
na praia do oriente
sou areia náufraga
de nenhum mundo
hei-de começar mais tarde
por ora
sou a pegada
do passo por acontecer

Mia Couto

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Eugénio Tavares

EUGÉNIO TAVARES :1861-1930
Nasceu na Brava (Cabo Verde). Autodidacta, funcionário publico, jornalista e polemista. Dramaturgo, ficcionista e poeta. Paradigma da crioulidade, autor de inúmeras mornas.
Foi na poesia crioula que Eugénio mais se notabilizou, pela construção de um estilo, um dos primeiros compositores a sistematizar a “sodade”, a “partida” e que compôs a primeira morna dedicada à “hora di bai”.

Canção ao Mar (Mar Eterno)
Oh mar eterno sem fundo,
Sem fim
Oh mar de túrbidas vagas,
Oh mar!
De ti e das bocas do mundo
A mim
Só me vem dores e pragas,
Oh mar!
Que mal te fiz,oh mar, oh mar
Que ao ver-me pões-te a arfar, a arfar
Quebrando as ondas tuas
De encontro às rochas nuas
Suspende a zanga um momento
Escuta
A voz do meu sofrimento
Na luta
Que o amor acende em meu peito
Desfeito
De tanto amar e penar, oh mar!
Que até parece oh mar, oh mar
Um coração a arfar, a arfar
Em ondas pelas fráguas
Quebrando as suas máguas
Dá-me notícias do meu amor, Amor
Que um dia os ventos do céu, Oh dor!
Nos seus braços furiosos
Levaram
E ao meu sorriso, invejosos,
Roubaram
Não mais voltou ao lar, ao lar
Não mais o vi oh mar, oh mar
Mar fria sepultura
Desta minha alma escura
Roubaste-me a luz querida
Do amor,
E me deixaste sem vida
No horror
Oh alma da tempestade
Amansa,
Não me leves a saudade
E a esperança
Que esta saudade, é quem, é quem
Me ampara tão fiel, fiel
É como a doce mãe
Suavíssima e cruel
Mas máguas desta aflição
Que agita
Meu infeliz coração,
Bendita,
Bendita seja a esperança
Que ainda
Lá me promete a bonança
Tão linda!

Mia Couto


Melhor que ninguém, Mia Couto sabe recriar palavras e cada uma delas encerra um mundo de significados.



Os filhos desistiram. A Canhoto lhe custava simplesmente existir. Morrer é fácil, difícil é existir-se morto, simplesmente havido, quieto, inestudável. E mais, aliás, menos nada. Tonico ficara assim desde que sua mulher Razia desaparecera, ida sabe-
-se com quem, desconhece-se para onde. Fora há uns anos, mas a ferida era ainda maior que a cicatriz. Quando sucedeu, nesse tempo em que tudo era tudo, Canhoto anunciou aos numerosos filhos:
- Vossa mãe, meus filhos. Vossa mãe, ela faleceu.
Todos sabiam que era mentira. Ela tinha desistido de constar, tentada em mulherar-
se em outros lugares. Deixado o marido em órfã viuvez, desconsolado.
Tinha-se passado tempo, os miúdos cresceram, se graúdaram e se graduaram em pais e mães. O que sobrava agora eram netos. Naquela tarde, fazia anos que a avó saíra. Falecera, como dizia o avô Canhoto. A família se juntava como era costume.


Contos do Nascer da Terra, A Palmeira de Nguézi

terça-feira, 20 de maio de 2008

Alda Lara

ALDA LARA (Alda Ferreira Pires Barreto de Lara Albuquerque. Benguela, Angola, 9.6.1930 - Cambambe, Angola, 30.1.1962). Era casada com o escritor Orlando Albuquerque. Muito nova veio para Lisboa onde concluíu o 7º ano dos liceus. Frequentou as Faculdades de Medicina de Lisboa e Coimbra, licenciando-se por esta última. Em Lisboa esteve ligada a algumas das actividades da Casa dos Estudantes do Império. Declamadora, chamou a atenção para os poetas africanos. Depois da sua morte, a Câmara Municipal de Sá da Bandeira instituiu o Prémio Alda Lara para poesia. Orlando Albuquerque propôs-se editar-lhe postumamente toda a obra e nesse caminho reuniu e publicou já um volume de poesias e um caderno de contos. Colaborou em alguns jornais ou revistas, incluindo a Mensagem (CEI). Figura em: Antologia de poesias angolanas,Nova Lisboa, 1958; amostra de poesia in Estudos Ultramarinos, nº 3, Lisboa1959; Antologia da terra portuguesa - Angola, Lisboa, s/d (196?)1; Poetas angolanos, Lisboa, 1962; Poetas e contistas africanos, S.Paulo, 1963; Mákua 2 - antologia poética, Sá da Bandeira, 1963; Mákua 3, idem; Antologia poética angolana, Sá da Bandeira, 1963; Contos portugueses do ultramar - Angola, 2º vol, Porto, 1969. Livros póstumos: Poemas, Sá da Bandeira, 1966; Tempo de chuva (c), Lobito, 1973.
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TESTAMENTO

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
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PRESENÇA AFRICANA

E apesar de todo, ainda sou a mesma!
Livre esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou,
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou, a Irmã-Mulher de tudo o que em ti vibra
puro e incerto...
A dos coqueiros, de cabeleiras verdes
e corpos arrojados sobre o azul...
A do dendêm,
nascendo dos abraços das palmeiras...
A do sol bom, mordendo chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...
Sim!, ainda sou a mesma.
A do amor transbordando pelos carregadores do cais,
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11! ... Rua 11...),
pelos meninos de barriga inchada e olhos fundos...
Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força deste dia...
E eu revendo ainda, e sempre, nela,
aquela longa história inconsequente...
Minha terra...
Minha, eternamente ...
Terra das acácias, dos dongos,
dos colios baloiçando, mansamente...
Terra!
Ainda sou a mesma.
Ainda sou a que num canto novo,
pura e livre
me levanto,
ao aceno do teu povo!

segunda-feira, 19 de maio de 2008

África


Tenho uma de grande admiração por África. No entanto, a visão romântica que tenho dela, não passa ao lado da pobreza de Moçambique, da crise do Darfur, da prepotência política no Zimbabwe ou da loucura em Angola.
Esta, digamos que, ligação a África advém das minhas costelas negras, herdadas da avó Conceição, filha ilegítima de um mulato rico estabelecido aqui no Algarve. Esta avó de pele branca, mas de nariz largo e boca grossa, gerou muitos filhos dados às cantorias e com pé para a dança. As gerações a seguir a ela, puxaram para o Fado e apreciam música bem ritmada. No que me toca, não fugi a nada disto. E também lhe acrescentei a admiração pelos espaços abertos, pela falta de pressa no dia a dia e pelo sentido prático das coisas.
Gosto da escrita africana, prosa ou poesia, seja em português com sotaque, seja em português com palavras recriadas ou inventadas, seja em crioulo. As palavras tomam a cor da terra, ganham a maciez da pele, respiram o ar quente, espraiam-se à frente do mar que visita as baías, gritam liberdade.

Por isso quero partilhar algumas coisas que me fazem companhia naqueles buracos vazios do tempo preenchido.

Provérbios Africanos II

Continuando nos provérbios africanos, estes são em crioulo da Guiné-Bissau, mas comuns a Cabo-Verde:
Bardadi i suma malgeta: i ta iardi (= a verdade é como a malaguete: ela arde)
Bariga i ka ta kosadu ku laska di kana (= não se coça a barriga com lascas de cana)
Bu na toka bu na baja (= você toca, você dança)
Dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil (= os dentes moram com a língua, mas às vezes eles a mordem)
Dun di boka ta tene pe (= quem tem boca não se perde no caminho)
Dun di un uju ka ta brinka ku reia (quem tem olho não brinca com areia)
E fila suma gatu ku kacur (= eles se dão como gato e cachorro)
Beju ki jokoni ta ma uja lonji di ke mininu ki sikidu (= um ancião acocorado vê mais longe do que um menino em pé)
Ken ki ma bu leña, ta ma bu sinsa (= quem é mais lenha do que você é também mais cinza)
Na no kombersa, ka bu pui boka, pui oreja (= em nossa conversa, não ponha a boca mas o ouvido)
Papagaiu ta kume miju, pirikitu ta paga fama (= papagaio come milho, periquito leva a fama)
Sapatu beju ka ta perta si dunu (= sapato velho não aperta o dono)
Sigridu di boka ka ta kanba dinti (= segredo de boca não deve ultrapassar os dentes)
Un son mon ka ta toka palmu (= uma mão sozinha não bate palmas)
Retirado de um texto de Hildo Honório do Couto
Departamento de Lingüística
Universidade de Brasília

sábado, 17 de maio de 2008

Sabedorias

Estou na onda da metáfora. Sempre achei que as entre-linhas eram melhores do que elas.

Provérbios africanos

Quem tem um ovo no saco não dança.
Mesmo que o leopardo durma, a ponta da sua cauda não dorme.
Pouco a pouco o algodão torna-se pano.
É na estação seca que se faz amizade com o timoneiro da piroga.
Não se espera pelo dia de marcado para engordar a galinha.
Quem põe demasiado de lado, acumula para o rival.
Quando se foi mordido pela serpente até se foge da centopeia.
Cada fio de água tem o seu caminho.
Um mau amigo impede que tenhas bons.
Se gostas do cão, gostas também das suas pulgas.
É melhor passar a noite com a cólera da ofensa do que com o arrependimento da vingança.
Caminha sempre à frente de ti mesmo , como o camelo que conduz a caravana.

Fabularium

Trago aqui esta fábula por dois motivos. O primeiro é pela riqueza vocabular. O segundo é pela sua relação intensa com o presente. Não há dados adquiridos, pelo que ninguém julgue que está seguro por mais forte que pareça ser. Os fracos vergam mas não quebram.

O Carvalho e o Junco
Disse um dia o carvalho ao junco da ribeira:
“Bem te podes queixar! É triste o teu destino!
O peso de um pardal p’ra ti é uma canseira.
E um ventinho qualquer, suave e fino,
Que mal enrugue as águas e estremeça,
Logo te faz curvar e baixar a cabeça!
Eu não!... A minha fronte, altiva e bela
Barra o caminho ao sol nos arredores do Verão,
E no Inverno defronta as fúrias da procela!
O que p’ra mim é brisa é para ti tufão!
Ainda se nascesses ao abrigo
Destas minhas ramagens opulentas
Não correrias tanto perigo,
Eu te defenderia das tormentas…
Mas quase sempre nasces- azarento!-
Nos húmidos umbrais dos domínios do Vento.
Como lamento esse teu fado injusto!”
“A tua compaixão”, lhe respondeu o arbusto,
“Vem de um bondoso coração…
Mas não te aflijas sem razão.
Os ventos são p’ra mim menos perigosos
Do que são para ti.
Eu dobro mas não quebro. E tu, se até aqui
Aguentaste os assaltos impiedosos
Sempre de pé, sem te curvar,
Espera até ver…” Mal acabara de falar,
Do fundo do horizonte acode, enfurecido,
O vento mais terrível e aguerrido
Que o Norte alguma vez gerou.
O carvalho aprumou-se; o caniço vergou.
Voltou o vento à carga – e num rompante
Arrancou p’la raiz o frondoso gigante
Que erguia até ao céu a majestosa fronte
E mergulhava os pés nas entranhas do monte.

Fábulas de LaFontaine, tradução de Esther de Lemos

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Letras de Rodapé

Como se diz cá na minha terra, ando um bocado "afeleada".É desta Primavera inconstante, entorpecida e enevoada. Pareço outra pessoa que não eu. Ouvi esta manhã a minha voz preferida (mas tenho outras) e é mesmo assim que ando.

Não Queiras Saber de Mim - Rui Veloso

Não queiras saber de mim
Esta noite não estou cá
Quando a tristeza bate
Pior do que eu não há
Fico fora de combate
Como se chegasse ao fim
Fico abaixo do tapete
Afundado no serrim

Não queiras saber de mim
Porque eu estou que não me entendo
Dança tu que eu fico assim
Hoje não me recomendo

Mas tu pões esse vestido
E voas até ao topo
E fumas do meu cigarro
E bebes do meu copo
Mas nem isso faz sentido
Só agrava o meu estado
Quanto mais brilha a tua luz
Mais eu fico apagado
Amanhã eu sei já passa
Mas agora estou assim
Hoje perdi toda a graça

Não queiras saber de mim
Dança tu que eu fico assim
Porque eu estou que não me entendo
Não queiras saber de mim
Hoje não me recomendo

segunda-feira, 12 de maio de 2008


Às vezes escrever é como uma bóia de salvação. Andamos perdidos num mar de ideias e pensamentos desencontrados, corremos desenfreadamente atrás de um quotidiano que nos ultrapassa na pressa dos dias. Umas vezes paramos para corrigir a direcção, outras fingimos que paramos, mas é como estarmos num combóio e ver pela janela a estação desandar.
Então aparecem aqueles dias, ou noites, em que compreendemos a inutilidade da pressa. Aí as ideias juntam-se de forma ordenada e encaixam nos pensamentos. Se calhar até nem é hoje.
Tirei não me lembro de onde esta imagem. Não sei se foi ela que originou esta soma de letras ou o contrário.

sábado, 10 de maio de 2008

Frida Kahlo


Outra grande Fotografia de Manuel Alvarez Bravo é esta de Frida Kahlo.
Ao seu poderoso físico, Frida acrescentava uma incrível encenação: usava sempre roupas das índias tehuanas, belíssimas vestes compridas crepitantes de combinações e rendas. Trançava os cabelos com fitas de cetim, flores, veludos; e enfeitava-se com pesadas jóias pré-colombianas ou coloniais. Para ela, vestir-se era mais uma expressão artística; entre arranjar-se diante de um espelho ou pintar um dos seus auto-retratos não devia haver muita diferença.. Nas duas actividades construía-se a si mesma, uma coisa que lhe era absolutamente necessária na sua corrida contra a decadência.
Montero, Rosa, Histórias de mulheres, , pág. 175, edições asa

Fotógrafos


Trago aqui a lembrança de Manuel Alvarez Bravo (1902- 2002) que é considerado o maior fotógrafo mexicano e um dos maiores do mundo. Privou, durante os anos 30, com os surrealistas, com os fotógrafos do modernismo e mesmo com os do fotojornalismo, este ainda em época de definição. A especificidade do seu trabalho, próximo de todos esses movimentos, enquadra-se nas mesmas circunstâncias culturais que fizeram aparecer artistas como Diego Rivera, de quem era amigo, ou Frida Kahlo. Ele é “o fotógrafo do México real” pela abordagem que faz do universo simbólico da América Latina. Esta Fotografia tem o título de "O Sonho"

Fotografias

Gosto muito de fotografias. Fotografias de pessoas, essencialmente.
Sempre que apanho um retrato à mão (ou à vista) a primeira coisa que me acode é: que estaria esta pessoa a pensar no momento? Pode parecer sem importância. Mas partindo do princípio que o rosto, ou mesmo todo o corpo, é o espelho do que vai na alma, calhando até tem alguma. Aqui por casa há muitas.Umas mais movimentadas do que outras. As dos casamentos repousam serenamente entre as folhas de álbuns separadas por papel de seda lavrada e só dão testemunho desses eventos quando há visitas longínquas e antigas. As fotos das viagens agrupam-se por destinos, de braço dado com bilhetes de museus, cartões de hotéis e panfletos turísticos. O seu lugar é na estante junto às enciclopédias e atlas, porque normalmente suscitam dúvidas sobre se o lugar x era antes ou depois do lugar y, ou se a porta onde aparecemos encostados era do museu tal ou tal, quando consultadas em termos de "nunca mais lá fomos" ou "já nem me lembro em que ano foi isso". Existem também uns quantos resguardos plastificados onde se amontoam fotografias avulsas
Os retratos da família estão juntinhos uns aos outros, alinhados por épocas e não têm pouso certo. Os mais antigos são vistos vezes sem conta. Admira-se o cabelo brilhante do avô, as sobrancelhas espessas do pai, a gola à americana do casaco do tio, os brincos de pendentes da mãe, as rendas da combinação da mana que escondiam o braço da prima que a segurava. Aqui tinha ela cinco anos. Aqui foi no ano da inspecção militar. Esta foi à entrada da feira. Coitadinho, morreu no ano a seguir. Tudo em tons de cinzento e sépia.
Que estariam eles a pensar no momento em que olhavam para a máquina?

quarta-feira, 7 de maio de 2008

(des)Acordo Ortográfico

Não resisto a transcrever as letras criativas de um amigo brasileiro sobre os efeitos do Novo Acordo Ortográfico:

Eis aqui um programa de cinco anos para resolver o problema da falta de confiança nas vantagens do novo acordo ortográfico.
Vamos facilitar as coisas, comecemos por reconhecer que o português é mesmo difícil.
Para não assustar os poucos que ainda sabem escrever, nem deixar mais confusos os que ainda tentam acertar, faremos tudo de forma gradual.
No primeiro ano, o "Ç" vai substituir o "S“ e o "C" sibilantes. O "Z" vai substituir o "S“ suave.
Portanto: Peçoaç que açedam à internet com frequênçia vão adorar, prinçipalmente oç adoleçenteç.
O "C" duro e o "QU“ em que o "U" não é pronunçiado çerão também trocadoç pelo "K", já ke o çom é ekivalente. Iço deve akabar kom a konfuzão e os tekladoç do komputador terão uma tekla a menoç.
Olha çó ke koiza prátika e ekonómika.
Haverá um aumento do entuziaçmo por parte do públiko no çegundo ano, kuando o problemátiko "H" mudo e todoç oç acentoç, inkluzive o til, forem eliminadoç.
O "CH" çera çimplifikado para "X“ e o "LH" pra "LI" ke da no meçmo e e maiç façil. Iço fara kom ke palavraç como "onra" fikem 20% maiç kurtaç e akabara kom o problema de çaber komo çe eçkreve xa e xatiçe.
Da meçma forma, o "G" ço çera uzado kuando o çom for komo em "gordo", e çem o "U" porke nao çera preçizo, ja ke kuando o çom for igual ao de "G“ como em "tigela", uza-çe o "J" pra façilitar ainda maiç a vida da jente.
No terçeiro ano, a açeitaçao publika da nova ortografia devera atinjir o estajio em ke mudançaç maiç komplikadaç çerao poçiveiç.
O governo vai enkorajar a remoçao de letraç dobradaç que alem de deçneçeçariaç çempre foram um problema terivel para aç peçoaç kom teror de çoletrar. Alem diço, todoç konkordarao ke oç çinaiç de pontuaçao komo virgulaç doiç pontoç açpaç e traveçao tambem çao difiçeiç de uzar e preçizam kair.
E olia ke ja vem tarde.
No kuarto ano todaç aç peçoaç ja çerao reçetivaç a koizaç komo a eliminaçao do plural noç adjetivo e noç subçtantivo e a unificaçao do U naç palavra ke terminam em L komo fuziu xakau ou kriminau de modo a fikarmo todo a falar o meçmo ja ke afinau a jente fala tudo iguau e açim fika mais faciu.
Oç brazileiro vao adorar embora oç karioka talvez nao goçtem de akabar com o plurau porke ele dizem o ç no finau daç palavra maç vao akabar por perçeber.
Oç paulista vao adorar. Oç goiano vao kerer aproveitar pra akabar com o D no jerundio mas ai tambem ja e demaiç.
No kinto ano akaba a ipokrizia de çe kolokar o R no finau dakelaç palavra no infinitivo ja ke ningem aç diç e tambem akabam oç U e oç I no meio daç palavra ke ningem pronunçia komo
por exemplo roba toca e enjenhero oç O e oç E naç palavra ke todoç pronunçiam como U ou I tambem paçam a çe eçkreve kom U e I i ai im vez di çi iskreve pur ezemplu kem ke fala kom ele vamu iskreve kem ke fala kum eli ki e muito milio çertu ?
oç çinau di interogaçao i di isklamaçao kontinuam para a jente çabe kuandu algem eçta a faze uma pergunta ou esta isklamandu ou gritandu kom a jenti e o pontu para a jenti sabe kuandu a fraze akabo.
Ningem vai te mais barera para a çua açençao çoçiau e çegurança pçikolojika todo vao iskreve sempri çertu i çi intende muitu melio i di forma mais façiu i finaumenti todoç vao çabe iskreve kuretamente ate uç jurnaliçta uç publiçitario uç blogeru uç advugado uç iskrito i ate uç pulitiku i u prezidenti.
Olia ço ki maravilia!
enviado por e-mail

sábado, 3 de maio de 2008

Dia da Mãe

4 de Maio é o dia da Mãe

Para todas as Mães do Mundo

Prelúdio

Pela estrada desce a noite
Mãe Negra desce com ela…

Nem bungavílias vermelhas,
nem vestidinhos de folhos,
nem brincadeiras de guisos,
nas suas mãos apertadas.
Só duas lágrimas grossas,
Em duas faces cansadas.

Mãe Negra tem voz de vento,
Voz de silêncio batendo
Nas folhas do cajueiro…

Tem voz de noite, descendo,
De mansinho, pela estrada…

Que é feito desses meninos
Que gostava de embalar?...

Que é feito desses meninos
Que ela ajudou a criar?...
Quem houve agora as histórias
Que costumava contar?...

Mãe Negra não sabe nada…

Mas ai de quem sabe tudo,
Como eu sei tudo
Mãe Negra!...

Os teus meninos cresceram,
e esqueceram as histórias
que costumavas contar…
Muitos partiram pr’a longe,
Quem sabe se hão-de voltar!...

Só tu ficaste esperando,
Mãos cruzadas no regaço,
Bem quieta bem calada.

É tua a voz deste vento,
Desta saudade descendo,
De mansinho pela estrada…


Alda Lara, Poemas

Os Amigos

E agora um miminho para os meus amigos que nasceram e viveram em terras de África: um excerto das letras bem somadas de um escritor que admiro, e que vem a propósito, também, deste mês de Maio.
Estava a cheirosa tarde de fim-de-chuvas, mês de novenas de Maio e nesse ano da graça de vinte e tal o calor mangonhava tempo adiante, cacimbo quase, e o quente da terra subia no ar cheio de húmido. Cheirava a mar, peixe se apodrecia na praia, tudo juntava-se no acre sentir da crueira cartada nos armazéns perto. Monangambas vinham com suas lengalengas de trabalho, repetiam, viravam mais forte no cheiro que tapava tudo. As moscas preguiçavam suas asas nos voos de lento, zumbidos. O ácido cheirar do azeite-palma fugia nos barris e tambores espalhados, se misturava todo ele nos pequenos soprares dum vento camuelo. Batida no sol da tarde, a Baía tremulava baça e morna.

Luandino Vieira, Velhas Estórias

Amizade

Num livro oferecido há bastante tempo, mão amiga escreveu esta dedicatória "a amizade é a maior e a mais nobre necessidade da natureza" - Goethe.

Outro amigo enviou-me esta mensagem sobre a Amizade.

Branco e Azul

É deste branco, encimado pelo azul do nosso céu, que eu falo. Quase que sinto saudades antevendo o tempo em que isto não existir. Esta ruazinha tem escapado à sanha demolidora do spray. Resquício de um antigo bairro, desconfio que pouca gente lhe acha graça e provavelmente estará na mira do camartelo. Evolução das sociedades, dirão uns, eu direi que é voltar costas a um passado, ignorando o conceito de conservação.

Descontentamento

Desde que abri aqui o estaminé ainda não tinha falado em descontentamento. Vou inaugurar hoje.
Não gosto muito da palavra descontentamento. Tem muitos tês, é comprida e áspera. Prefiro desagrado, desencanto ou, se me fosse permitido inventar palavras, desalegria. Mas cá vai.
No feriado fui fazer umas fotografias à minha cidade. Não me canso das ruas estreitinhas, da calçada irregular, da ria. Cansei-me foi de ver o estado em que está qualquer pedaço de parede clara, qualquer porta fechada, qualquer fachada, ou até meios de transporte. Graffitis? Não sei se são. Os graffitis são arte quando há mensagem, compreendida por todos e estética visual. Mas o que eu vejo são borrões importados de outras culturas, cujos autores duvido que saibam qual a pata direita do cavalo de D.José. Provavelmente haverá em outras localidades. Aqui na minha cidade a coisa é abusiva. Mas o meu espanto é ainda maior quando vejo alguns autores actuarem à vista de todos, com a calma própria de quem para tal está autorizado. Estarão? Não sei. Só sei que a mim ninguém me pediu autorização para "ilustrar" uma parede que suporta um dos acessos ao local onde moro. Quando se olha, não se entendem os elementos. Visualmente é aberrante. Dá um aspecto decadente e degradado. Se calhar, o contrário do pretendido. Tanta coisa que na minha cidade é alvo de fiscalização menos esta que, pelos vistos, não fere ninguém.
Estou descontente. Há inércia e muito "laissez faire, laissez passer". Qualquer dia, a"vila cubista" não será mais que uma designação que para se saber o que significa tem de se fazer uma pesquisa aturada na Torre do Tombo.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Barquinho


Dia de luz,
festa de sol
e o barquinho a deslizar
no macio azul do mar.
tudo é verão,
o amor se faz
num barquinho pelo mar,
que desliza sem parar,
sem intenção, nossa canção
vai saindo desse mar
e o sol beija o barco e luz,
dias tão azuis.

Volta do mar,
desmaia o sol
e o barquinho a deslizar.
a vontade de cantar
Céu tão azul,
ilhas do sul
e o barquinho é um coração
deslizando na canção.
Tudo isso é paz,
tudo isso traz
uma calma de verão e então
o barquinho vai,
a tardinha cai,
o barquinho vai.

João Gilberto

Arrastão


Eh! tem jangada no mar
Eh! eh! eh! Hoje tem arrastão
Eh! Todo mundo pescar
Chega de sombra e João Jô viu
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
É meu irmão me traz Iemanjá prá mim
Olha o arrastão entrando no mar sem fim
É meu irmão me traz Iemanjá prá mim
Minha Santa Bárbara me abençoai
Quero me casar com Janaína
Eh! Puxa bem devagar
Eh! eh! eh! Já vem vindo o arrastão
Eh! É a rainha do mar
Vem, vem na rede João prá mim
Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca, jamais se viu tanto peixe assim
Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim
Nunca, jamais se viu tanto peixe assim

Elis Regina

Tanto Mar

Do Chico Buarque

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Zeca Afonso e as Cantigas do Maio

Maio sem Zeca Afonso? Não me parece!

Maio maduro Maio

Maio maduro Maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul

Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era o dia da festa
Maio de amores
Era o dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar

Maio com meu amigo
Quem dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar

Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu

Aquele Primeiro Maio

Para começar este 1 de Maio e lembrar o primeiro de há muitos anos atrás, trago aqui as letras sabiamente somadas do poeta José Carlos Ary dos Santos

A cidade é um chão de palavras pisadas

A cidade é um chão de palavras pisadas
a palavra criança , a palavra segredo.
A cidade é um céu de palavras paradas
a palavra distância e a palavra medo.

A cidade é um saco , um pulmão que respira
pela palavra água , pela palavra brisa
A cidade é um poro , um corpo que transpira
pela palavra sangue , pela palavra ira.

A cidade tem praças de palavras abertas
como estátuas mandadas apear.
A cidade tem ruas de palavras desertas
como jardins mandados arrancar.

A palavra sarcasmo é uma rosa rubra.
A palavra silêncio é uma rosa chá.
Não há céu de palavras que a cidade não cubra
não há rua de sons que a palavra não corra
à procura da sombra de uma luz que não há.