Língua Portuguesa
Teolinda
Gersão escreveu, no Público de 18/06/2012, uma Declaração de amor à Língua
Portuguesa que é um texto sobre o horror que está instalado
no ensino do Português.
Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para
estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por
escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são
minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que
vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos,
façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a
gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um
massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam
ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando
se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial
de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na
retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos
“ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é
característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a
predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete
colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de
tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram
e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o
simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está.
Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um
complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo
verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao
mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de
evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um
verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários
pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos,
psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e
relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o
determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as
locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas.
Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores
secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão
temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do
enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se
disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa.
Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é
de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga
entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era
ela,subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que
continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no
espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado
ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo,
embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática
do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que
quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou
no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou
ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas
que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,o
que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com
valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do
modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia,
meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e
interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto,
prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e
implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário
inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons,
dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para
esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a
mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6
letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto.
Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles,
excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às
vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas
flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na
frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso
que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto
respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte
ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e
reportagens,ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead,
parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem
pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções
também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número
certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece,
porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se
lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai
diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos
quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a
nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz
o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e
redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos
em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos
servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar.
E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou
deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João,
onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na
retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).
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