segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Liberdade

Paul Éluard (Saint-Denis, 14 de dezembro de 1895 - Charenton-le-Pont, 18 de novembro de 1952)


Nos meus cadernos de escola
no banco dela e nas árvores
e na areia e na neve
escrevo o teu nome

Em todas as folhas lidas
nas folhas todas em branco
pedra sangue papel cinza
escrevo o teu nome

Nas imagens todas de ouro
e nas armas dos guerreiros
nas coroas dos monarcas
escrevo o teu nome

Nas selvas e nos desertos
nos ninhos e nas giestas
no eco da minha infância
escrevo o teu nome

Nas maravilhas das noites
no pão branco das manhãs
nas estações namoradas
escrevo o teu nome

Nos meus farrapos de azul
no charco sol bolorento
no lago da lua viva
escrevo o teu nome

Nos campos e no horizonte
nas asas dos passarinhos
e no moinho das sombras
escrevo o teu nome

No bafejar das auroras
no oceano nos navios
e na montanha demente
escrevo o teu nome

Na espuma fina das nuvens
no suor do temporal
na chuva espessa apagada
escrevo o teu nome

Nas formas mais cintilantes
nos sinos todos das cores
na verdade do que é físico
escrevo o teu nome

Nos caminhos despertados
nas estradas desdobradas
nas praças que se transbordam
escrevo o teu nome

No candeeiro que se acende
no candeeiro que se apaga
nas minhas casas bem juntas
escrevo o teu nome

No fruto cortado em dois
do meu espelho e do meu quarto
na cama concha vazia
escrevo o teu nome

No meu cão guloso e terno
nas suas orelhas tesas
na sua pata desastrada
escrevo o teu nome

No trampolim desta porta
nos objectos familiares
na onda do lume bento
escrevo o teu nome

Na carne toda rendida
na fronte dos meus amigos
em cada mão que se estende
escrevo o teu nome

Na vidraça das surpresas
nos lábios todos atentos
muito acima do silêncio
escrevo o teu nome

Nos refúgios destruídos
nos meus faróis arruinados
nas paredes do meu tédio
escrevo o teu nome

Na ausência sem desejos
na desnuda solidão
nos degraus mesmos da morte
escrevo o teu nome

Na saúde rediviva
aos riscos desaparecidos
no esperar sem saudade
escrevo o teu nome

Por poder de uma palavra
recomeço a minha vida
nasci para conhecer-te
nomear-te

                                                                                     Tradução JORGE DE SENA

domingo, 13 de dezembro de 2015

O Primeiro Beijo

Capela de Scrovegni , Pádua, Itália. Fresco de Giotto: encontro na Porta Dourada Detalhe do beijo de St. Anna e S. Joaquim


Para os cristãos, Ana e Joaquim são os pais da Virgem Maria e, por isso, avós maternos de Jesus. O primeiro encontro do casal deu-se na Porta Dourada, uma das entradas de Jerusalém. Em vinte anos de casamento não houve filhos. Porém, um dia um Anjo anunciou-lhes a gravidez tão esperada. A celestial boa nova foi dada a cada um em separado, pelo que quando se encontraram no local onde se tinham conhecido, saudaram-se com alegria e beijaram-se. 
O beijo entre Santa Ana e São Joaquim marca o primeiro beijo em história da arte. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Poetas da minha Terra

MEDITAÇÃO JUNTO À RIA

Envelhecemos, ao que vejo. Envelhecemos, uns e outros.
Debruçado à ria, como um antigo e profundo sesh debruçado em Tebas às artes da escrita,
recrio no papel o que fica da realidade que passou já;
e não sei o que é mais real – se o que agora mesmo,
ou ontem, ou na vida antiga se converteu em fumo e ausência,
se o que por minhas palavras sobrepassa o esquecimento.

Pela palavra herdo o que ficou de tudo o que se foi:
um vento, uma espectativa, um latir de cães ao longe, um amor em viagem.
Ó escribas velhos, onde dormem palácios e cheias, monumentos e túmulos!
Ó Palavras e signos e breves incisões de água na pele dos dias!
Ouvimos o que por vossos ouvidos outrora foi escutado, pintores de um mundo que se foi,
como águas velhas em que uma vela circula, desinteressada de brisas.
Vemos por vossas relíquias e vozes e hieroglifos e textos e sinais,
a viva gente que um dia foi e se desfez em pó
como um deserto de angústias e secura.
Escrevo para não esquecer.
Escrevo sobre uma ria que flutua nas inconsequentes demoras.
Escrevo um barco, um navio de sombras encostado a sombras, com pinturas recentes de malvasia e lume.
Escrevo para que o que passou não passe; e quede como se fora ainda, como se para sempre na
memória existisse por cedros e relâmpagos, abrindo portas que dão para não sei onde,
desvendando corredores irreais onde todos os sonhos moram,
esperando os comboios que mais tarde chegarão a silvar sobre o ruído dos tempos.
Creio em vós, todos os que foram e se foram. Creio em vós, filhos de Ptah, filhos dos homens que sorveram a terra.
Como vós envelhecemos. Envelhecemos todos, uns vivos outros mortos,
mas todos a peregrinar jornadas que não findam.
Deixámos de ser meninos.
Deixámos de ser os que brincavam na ria, entre lodos felizes e dias de verão.
Não somos mais um quadro de Sorolla em que a água vive.
Deixámos de o ser, mas somo-lo. Somo-lo todavia.
Acrescentámos ao que éramos outras coisas que mal distinguimos agora.
Acrescentámos, acrescentámo-nos, ao que éramos o que nunca quereríamos ser.
O tempo empurra-nos. O tempo justifica-nos.
O tempo deu-nos a cobardia essencial, a coragem escondida,
a estranheza, o frio de noites esquecidas.
Acrescentámos à nossa própria criatura outras criaturas que dentro de nós havia.
Estranhas. Diversas. Indesejadas.
Mas sobra sempre aquela, a que somente conhecíamos quando tudo era ria e afagos de brisa
e fogo aceso em cada céu
e dias distendidos sobre a alma como uma toalha em que descansasse ainda o nosso antigo corpo.
E tudo ficou em palavras, nas palavras, por palavras.
Nada nos fugiu. Nada nos fugirá.
Vai pois ria, ide águas!
Dizei a quem virdes que estamos vivos.
Que apesar de tudo estamos vivos e fazemos por ser felizes.
Que nada nos causa pena.
E do que nos causar pena, faremos versos…
Fernando Cabrita