COMUNICAÇÃO AO PAÍS, de Fernando Cabrita
Na Terras dos Mortos
Sua Excelência Catatónica,
ante os olhares absortos
doutra múmia faraónica,
aos seus concadáveres comunica
que reina a total estabilidade.
pois o governo polvilha-se de arnica
e o parlamento está em santidade.
Nos fundilhos de cada caixão
o verme gordo, mole e torto
bichana em plena corrupção
e emparelha alegre com o Rei Morto.
Sua Excelência mexe um pouco a nuca;
Efeito do vento, talvez, quiçá.
Bolsa uma ideia revelha e caduca
celebrando o que diz que há.
Não há pão, não há bebida
falta o respeito, falta a verdade.
Falta a saúde e até falta a vida.
Mas há - Ah! -, há estabilidade.
Faltam pensões, faltam valores,
não há saúde, não há justiça.
Não há escolas nem professores;
mas há estabilidade; e ás vezes missa.
Faltam salários, férias, leis direitas;
não há sequer solidariedade.
Mas sobram subornos e peitas.
E há, há, Ah! estabilidade.
A banca rouba o que pode
e nunca vai preso aquele que roubou
o pobre é sempre quem se lixa
( e não sei porque é que isto não rimou...)
Mas mesmo quando a pobreza invade
as famílias e as pessoas,
há, Ah!, ao menos estabilidade,
e a nossa estabilidade é que é das boas.
Os poderosos dos mausoléus,
dos monumentais jazigos,
embora seja de bradar aos céus
continuam corrompendo-se entre amigos.
Saem do Jazigo para a Capela,
da Capela para o Velório Antigo
e quando não se dá por ela,
já estão outra vez dentro do Jazigo.
Gastam a cera das velas,
fazem caça, atiram tiros,
papam fígados e moelas,
comem tudo, como os vampiros.
É um Cemitério das Bananas
esta treta de cemitério
e estas múmias e seu bando de sacanas
celebaram o esqueleto do Império.
Comem tudo e não deixam nada,
e os mortos de sempre é quem paga.
Os das fossas,gente mal enterrada
que até para morrer andou à vaga.
Faltam flores, faltam coroas,
faltam cheiros de liberdade.
Mas sua Excelência Múmia tece loas
à recantada estabilidade.
Sua Excelência foi vivo outrora.
Agora jaz;, mas nele votam outros mortos
E por isso, múmia embora,
ele abana e mexe os olhos torto.
E do peito cadavérico,
que o verme irrespeitoso invade,
sai-lhe só um discurso pindérico:
Estabilidade! Estabilidade!
Subsídios para Um Cancioneiro da Terra dos Mortos
Ceguinho do séc. XXI, à porta do Cemitério Novo de Olhão.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
Estudar com Música
Essa ideia de fazer uma lista de músicas prontinhas a ajudar os alunos a ter melhores notas não é má de todo.
Quando
era adolescente, o radiozinho de pilhas era o meu fiel companheiro das
tardes de estudo, debitando melodias de paixão para os registos no
caderno ou ritmos avassaladores para os exercícios de aplicação. A
revisão das matérias para os testes do dia seguinte era enquadrada num
Mozart ou Débussy, generosamente oferecidos pela Emissora Nacional. Nem
concebia estudar sem música!
A
ideia velha rejuvenesceu e atualizou-se. Uma psicóloga britânica
juntou-se à spotify para criar a tal lista: músicas para o começo do
dia, com várias batidas, alegre o suficiente de modo a acordar
devidamente e encarar as aulas com o espírito de conquistador; músicas
para a hora do almoço, electrónica de preferência, tendo em vista a
libertação das energias acumuladas ou atrofiadas na sala de aula e
auxiliar na digestão; música mais geral para compor o estudo de tarde;
as baladas e afins embalarão o jovem num sono tranquilo e reparador.
Genial!
Podemos contar daqui para a frente com gerações aplicadas e firmemente cientes da importância da Escola e da Música.
sábado, 28 de junho de 2014
sexta-feira, 23 de maio de 2014
Dia de São Votar
Domingo é Dia de São
Votar. Feitos os sacrifícios de os ouvir e as penitências por votarmos
confiadamente na defesa dos nossos interesses, iremos em romaria à urna
mais próxima comungar das ilusões e das esperanças que ainda temos de
que o nosso voto conte para alguma coisa que nos traga benefício, a
curto e a médio prazo. Nesta Europa a que pertencemos mas que não é
nossa.
O poeta Joaquim Pessoa dá-nos uma ajuda no enquadramento da nossa intenção de escolha:
Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.
domingo, 4 de maio de 2014
Dia da Mãe
Quando Eu For Pequeno
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
José Jorge Letria, in "O Livro Branco da Melancolia"
Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.
Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.
Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.
Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas.
José Jorge Letria, in "O Livro Branco da Melancolia"
segunda-feira, 14 de abril de 2014
A Páscoa e os Folares
Seja qual for a sua zona de origem, com mais doce ou menos doce, com ovo ou sem ele, liso ou de folhas, também o folar tem uma lenda associada.
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Folar de Olhão |
Reza a lenda que, numa aldeia portuguesa, habitava uma rapariga
chamada Mariana, cujo único desejo e objectivo na vida era casar cedo.
Mariana rezava todos os dias a Santa Catarina e de tanto rezar, o seu
desejo acabou por se realizar. Um certo dia, surgiram-lhe dois
pretendentes: um fidalgo rico e um lavrador pobre, ambos jovens e muito
bonitos. Perante uma grande indecisão, Mariana voltou a rezar a Santa
Catarina, pedindo-lhe ajuda para tomar a decisão acertada. Enquanto
estava concentrada na sua oração, o lavrador pobre, chamado Amaro,
bateu-lhe à porta e pediu-lhe uma resposta, marcando como data limite o
Domingo de Ramos. Nesse mesmo dia, umas horas depois, apareceu o fidalgo
e pediu-lhe também uma resposta. Mariana ficou sem saber o que fazer!
Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha, muito aflita, foi a casa da
Mariana avisá-la de que tinha visto o fidalgo e o lavrador numa luta de
morte, no meio da rua. Mariana correu até ao lugar onde os dois se
defrontavam e, ao pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de
Amaro, o lavrador pobre.
Na véspera de Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, pois tinha ouvido dizer que o fidalgo ia aparecer no dia do seu casamento para matar Amaro. Mariana voltou a pedir ajuda a Santa Catarina e a imagem da Santa apareceu-lhe, a sorrir.
No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar de Santa Catarina e, ao chegar a casa, viu um grande bolo com ovos inteiros, rodeado das flores que Mariana tinha posto no altar, em cima da mesa. Correu até casa de Amaro e para seu espanto, também este tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, resolveram ir agradecer-lhe. Mas também este tinha recebido o mesmo bolo. Mariana teve a certeza de que tudo aquilo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore, o bolo passou a ser conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. É por isso que, nos dias de hoje, os afilhados levam um ramo de flores às madrinhas de baptismo e estas, no Domingo de Páscoa, oferecem-lhes, em retribuição, um folar.
Na véspera de Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, pois tinha ouvido dizer que o fidalgo ia aparecer no dia do seu casamento para matar Amaro. Mariana voltou a pedir ajuda a Santa Catarina e a imagem da Santa apareceu-lhe, a sorrir.
No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar de Santa Catarina e, ao chegar a casa, viu um grande bolo com ovos inteiros, rodeado das flores que Mariana tinha posto no altar, em cima da mesa. Correu até casa de Amaro e para seu espanto, também este tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, resolveram ir agradecer-lhe. Mas também este tinha recebido o mesmo bolo. Mariana teve a certeza de que tudo aquilo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore, o bolo passou a ser conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. É por isso que, nos dias de hoje, os afilhados levam um ramo de flores às madrinhas de baptismo e estas, no Domingo de Páscoa, oferecem-lhes, em retribuição, um folar.
(Através da amiga Isabel Caiado Vedes, de Faro)
sexta-feira, 21 de março de 2014
Dia da Poesia II
Soneto imperfeito da caminhada perfeita
Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Sidónio Muralha
Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.
Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
Sidónio Muralha
Dia da Poesia
Vidro Côncavo
António Gedeão
Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.
Doi esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.
Solidão
Mia Couto
Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio
É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou
Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna
Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo
Motivo
Cecília Meireles
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E sei que um dia estarei mudo:
- mais nada
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