segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Poetas da minha Terra

MEDITAÇÃO JUNTO À RIA

Envelhecemos, ao que vejo. Envelhecemos, uns e outros.
Debruçado à ria, como um antigo e profundo sesh debruçado em Tebas às artes da escrita,
recrio no papel o que fica da realidade que passou já;
e não sei o que é mais real – se o que agora mesmo,
ou ontem, ou na vida antiga se converteu em fumo e ausência,
se o que por minhas palavras sobrepassa o esquecimento.

Pela palavra herdo o que ficou de tudo o que se foi:
um vento, uma espectativa, um latir de cães ao longe, um amor em viagem.
Ó escribas velhos, onde dormem palácios e cheias, monumentos e túmulos!
Ó Palavras e signos e breves incisões de água na pele dos dias!
Ouvimos o que por vossos ouvidos outrora foi escutado, pintores de um mundo que se foi,
como águas velhas em que uma vela circula, desinteressada de brisas.
Vemos por vossas relíquias e vozes e hieroglifos e textos e sinais,
a viva gente que um dia foi e se desfez em pó
como um deserto de angústias e secura.
Escrevo para não esquecer.
Escrevo sobre uma ria que flutua nas inconsequentes demoras.
Escrevo um barco, um navio de sombras encostado a sombras, com pinturas recentes de malvasia e lume.
Escrevo para que o que passou não passe; e quede como se fora ainda, como se para sempre na
memória existisse por cedros e relâmpagos, abrindo portas que dão para não sei onde,
desvendando corredores irreais onde todos os sonhos moram,
esperando os comboios que mais tarde chegarão a silvar sobre o ruído dos tempos.
Creio em vós, todos os que foram e se foram. Creio em vós, filhos de Ptah, filhos dos homens que sorveram a terra.
Como vós envelhecemos. Envelhecemos todos, uns vivos outros mortos,
mas todos a peregrinar jornadas que não findam.
Deixámos de ser meninos.
Deixámos de ser os que brincavam na ria, entre lodos felizes e dias de verão.
Não somos mais um quadro de Sorolla em que a água vive.
Deixámos de o ser, mas somo-lo. Somo-lo todavia.
Acrescentámos ao que éramos outras coisas que mal distinguimos agora.
Acrescentámos, acrescentámo-nos, ao que éramos o que nunca quereríamos ser.
O tempo empurra-nos. O tempo justifica-nos.
O tempo deu-nos a cobardia essencial, a coragem escondida,
a estranheza, o frio de noites esquecidas.
Acrescentámos à nossa própria criatura outras criaturas que dentro de nós havia.
Estranhas. Diversas. Indesejadas.
Mas sobra sempre aquela, a que somente conhecíamos quando tudo era ria e afagos de brisa
e fogo aceso em cada céu
e dias distendidos sobre a alma como uma toalha em que descansasse ainda o nosso antigo corpo.
E tudo ficou em palavras, nas palavras, por palavras.
Nada nos fugiu. Nada nos fugirá.
Vai pois ria, ide águas!
Dizei a quem virdes que estamos vivos.
Que apesar de tudo estamos vivos e fazemos por ser felizes.
Que nada nos causa pena.
E do que nos causar pena, faremos versos…
Fernando Cabrita

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