terça-feira, 28 de outubro de 2014

Poesia da Minha Terra

COMUNICAÇÃO AO PAÍS, de Fernando Cabrita

Na Terras dos Mortos
Sua Excelência Catatónica,
ante os olhares absortos
doutra múmia faraónica,
aos seus concadáveres comunica
que reina a total estabilidade.
pois o governo polvilha-se de arnica
e o parlamento está em santidade.
Nos fundilhos de cada caixão
o verme gordo, mole e torto
bichana em plena corrupção
e emparelha alegre com o Rei Morto.
Sua Excelência mexe um pouco a nuca;
Efeito do vento, talvez, quiçá.
Bolsa uma ideia revelha e caduca
celebrando o que diz que há.
Não há pão, não há bebida
falta o respeito, falta a verdade.
Falta a saúde e até falta a vida.
Mas há - Ah! -, há estabilidade.
Faltam pensões, faltam valores,
não há saúde, não há justiça.
Não há escolas nem professores;
mas há estabilidade; e ás vezes missa.
Faltam salários, férias, leis direitas;

não há sequer solidariedade.
Mas sobram subornos e peitas.
E há, há, Ah! estabilidade.
A banca rouba o que pode
e nunca vai preso aquele que roubou
o pobre é sempre quem se lixa
( e não sei porque é que isto não rimou...)
Mas mesmo quando a pobreza invade
as famílias e as pessoas,
há, Ah!, ao menos estabilidade,
e a nossa estabilidade é que é das boas.
Os poderosos dos mausoléus,
dos monumentais jazigos,
embora seja de bradar aos céus
continuam corrompendo-se entre amigos.
Saem do Jazigo para a Capela,
da Capela para o Velório Antigo
e quando não se dá por ela,
já estão outra vez dentro do Jazigo.
Gastam a cera das velas,
fazem caça, atiram tiros,
papam fígados e moelas,
comem tudo, como os vampiros.
É um Cemitério das Bananas
esta treta de cemitério
e estas múmias e seu bando de sacanas
celebaram o esqueleto do Império.
Comem tudo e não deixam nada,
e os mortos de sempre é quem paga.
Os das fossas,gente mal enterrada
que até para morrer andou à vaga.
Faltam flores, faltam coroas,
faltam cheiros de liberdade.
Mas sua Excelência Múmia tece loas
à recantada estabilidade.
Sua Excelência foi vivo outrora.  

Agora jaz;, mas nele votam outros mortos
E por isso, múmia embora,
ele abana e mexe os olhos torto.
E do peito cadavérico,
que o verme irrespeitoso invade,
sai-lhe só um discurso pindérico:
Estabilidade! Estabilidade!

Subsídios para Um Cancioneiro da Terra dos Mortos

Ceguinho do séc. XXI, à porta do Cemitério Novo de Olhão.
 

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Estudar com Música

Essa ideia de fazer uma lista de músicas prontinhas a ajudar os alunos a ter melhores notas não é má de todo. 
Quando era adolescente, o radiozinho de pilhas era o meu fiel companheiro das tardes de estudo, debitando melodias de paixão para os registos no caderno ou ritmos avassaladores para os exercícios de aplicação. A revisão das matérias para os testes do dia seguinte era enquadrada num Mozart ou Débussy, generosamente oferecidos pela Emissora Nacional. Nem concebia estudar sem música!
A ideia velha rejuvenesceu e atualizou-se. Uma psicóloga britânica juntou-se à spotify para criar a tal lista: músicas para o começo do dia, com várias batidas, alegre o suficiente de modo a acordar devidamente e encarar as aulas com o espírito de conquistador; músicas para a hora do almoço, electrónica de preferência, tendo em vista a libertação das energias acumuladas ou atrofiadas na sala de aula e auxiliar na digestão; música mais geral para compor o estudo de tarde; as baladas e afins embalarão o jovem num sono tranquilo e reparador. Genial!
Podemos contar daqui para a frente com gerações aplicadas e firmemente cientes da importância da Escola e da Música.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Dia de São Votar

Domingo é Dia de São Votar. Feitos os sacrifícios de os ouvir e as penitências por votarmos confiadamente na defesa dos nossos interesses, iremos em romaria à urna mais próxima comungar das ilusões e das esperanças que ainda temos de que o nosso voto conte para alguma coisa que nos traga benefício, a curto e a médio prazo. Nesta Europa a que pertencemos mas que não é nossa.
O poeta Joaquim Pessoa dá-nos uma ajuda no enquadramento da nossa intenção de escolha:

Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.

domingo, 4 de maio de 2014

Dia da Mãe

Quando Eu For Pequeno  

Quando eu for pequeno, mãe,
quero ouvir de novo a tua voz
na campânula de som dos meus dias
inquietos, apressados, fustigados pelo medo.
Subirás comigo as ruas íngremes
com a certeza dócil de que só o empedrado
e o cansaço da subida
me entregarão ao sossego do sono.

Quando eu for pequeno, mãe,
os teus olhos voltarão a ver
nem que seja o fio do destino
desenhado por uma estrela cadente
no cetim azul das tardes
sobre a baía dos veleiros imaginados.

Quando eu for pequeno, mãe,
nenhum de nós falará da morte,
a não ser para confirmarmos
que ela só vem quando a chamamos
e que os animais fazem um círculo
para sabermos de antemão que vai chegar.

Quando eu for pequeno, mãe,
trarei as papoilas e os búzios
para a tua mesa de tricotar encontros,
e então ficaremos debaixo de um alpendre
a ouvir uma banda a tocar
enquanto o pai ao longe nos acena,
lenço branco na mão com as iniciais bordadas,
anunciando que vai voltar porque eu sou pequeno
e a orfandade até nos olhos deixa marcas. 


José Jorge Letria, in "O Livro Branco da Melancolia"

segunda-feira, 14 de abril de 2014

A Páscoa e os Folares

Seja qual for a sua zona de origem, com mais doce ou menos doce, com ovo ou sem ele, liso ou de folhas, também o folar tem uma lenda associada.
Folar de Olhão



Reza a lenda que, numa aldeia portuguesa, habitava uma rapariga chamada Mariana, cujo único desejo e objectivo na vida era casar cedo. Mariana rezava todos os dias a Santa Catarina e de tanto rezar, o seu desejo acabou por se realizar. Um certo dia, surgiram-lhe dois pretendentes: um fidalgo rico e um lavrador pobre, ambos jovens e muito bonitos. Perante uma grande indecisão, Mariana voltou a rezar a Santa Catarina, pedindo-lhe ajuda para tomar a decisão acertada. Enquanto estava concentrada na sua oração, o lavrador pobre, chamado Amaro, bateu-lhe à porta e pediu-lhe uma resposta, marcando como data limite o Domingo de Ramos. Nesse mesmo dia, umas horas depois, apareceu o fidalgo e pediu-lhe também uma resposta. Mariana ficou sem saber o que fazer!
Chegado o Domingo de Ramos, uma vizinha, muito aflita, foi a casa da Mariana avisá-la de que tinha visto o fidalgo e o lavrador numa luta de morte, no meio da rua. Mariana correu até ao lugar onde os dois se defrontavam e, ao pedir ajuda a Santa Catarina, Mariana soltou o nome de Amaro, o lavrador pobre.
Na véspera de Domingo de Páscoa, Mariana andava atormentada, pois tinha ouvido dizer que o fidalgo ia aparecer no dia do seu casamento para matar Amaro. Mariana voltou a pedir ajuda a Santa Catarina e a imagem da Santa apareceu-lhe, a sorrir.
No dia seguinte, Mariana foi pôr flores no altar de Santa Catarina e, ao chegar a casa, viu um grande bolo com ovos inteiros, rodeado das flores que Mariana tinha posto no altar, em cima da mesa. Correu até casa de Amaro e para seu espanto, também este tinha recebido um bolo semelhante. Pensando ter sido ideia do fidalgo, resolveram ir agradecer-lhe. Mas também este tinha recebido o mesmo bolo. Mariana teve a certeza de que tudo aquilo tinha sido obra de Santa Catarina.
Inicialmente chamado de folore, o bolo passou a ser conhecido como folar e tornou-se numa tradição que celebra a amizade e a reconciliação. É por isso que, nos dias de hoje, os afilhados levam um ramo de flores às madrinhas de baptismo e estas, no Domingo de Páscoa, oferecem-lhes, em retribuição, um folar.

(Através da amiga Isabel Caiado Vedes, de Faro)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Dia da Poesia II

Soneto imperfeito da caminhada perfeita

Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Sidónio Muralha

Dia da Poesia

Vidro Côncavo
António Gedeão


Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Saber a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Doi esta corda vibrante
A corda que o barco prende
à fria argola do cais
Se uma onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.


Solidão
Mia Couto

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo


Motivo
Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E sei que um dia estarei mudo:
- mais nada