segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

BOAS FESTAS


Hoje é dia de Natal
Mas o Menino Jesus
Nem sequer tem uma cama,
Dorme na palha onde o pus.

Recebi cinco binquedos
Mais um casaco comprido.
Pobre Menino Jesus,
Faz anos e está despido.

Comi bacalhau e bolos,
Peru, pinhões e pudim.
Só ele não comeu nada
Do que me deram a mim.

Os reis de longe lhe trazem
Tesouro, incenso e mirra.
Se me dessem tais presentes,
Eu cá fazia uma birra.

Às escondidas de todos
Vou pegar-lhe pela mão
E sentá-lo no meu colo
Para ver televisão.


Dia de Natal - Luisa Ducla Soares

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Já não sei o que é a Ética

A minha avó costumava dizer que "A consciência é verde, veio um burro e comeu-a".
Certamente que a Ética tem a mesma cor.

Por definição, a Ética ocupa-se da conduta humana do ponto de vista do Bem e do Mal. Daí não ter percebido logo à primeira esta notícia:


No seguimento da leitura e para tentar perceber  se o título condizia com o corpo da notícia, deparo-me com esta declaração:

 Miguel Oliveira da Silva afirmou que "não só é legítimo como, mais do que isso, desejável" porque "vivemos numa sociedade em que, independentemente das restrições orçamentais, não é possível, em termos de cuidados de saúde, todos terem acesso a tudo».

 Vindo de alguém que preside ao um Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), estas palavras são ofensivas à dignidade humana. Se um tal Conselho aceita como natural que nem todos tenham acesso ao mesmo tipo de cuidados de saúde, porque mais dois meses ou menos dois meses de vida é igual,  apetece-me dizer que  quando um dos seus membros ou familiares tiver algum problema semelhante, não vale a pena gastar dinheiro ao estado nem diminuir as suas heranças em clínicas particulares, basta dirigir-se ao penhasco mais próximo!

Estas são letras de grande descontentamto. É demasiado orwelliano para ser a sério! Quantos milhares gastos em campanhas de Todos diferentes, todos iguais, Oportunidades iguais para todos, e agora , de repente, em nome de uma economia que borrou a pintura, debitam-se frases destas. É assustador!

Também a minha avó já dizia: "Muito tens, muito vales, nada tens, nada vales"

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Outono


 CANÇÃO DE OUTONO
Cecília Meireles

Perdoa-me, folha seca,
não posso cuidar de ti.
Vim para amar neste mundo,
e até do amor me perdi.



De que serviu tecer flores
pelas areias do chão,
se havia gente dormindo
sobre o própro coração?


E não pude levantá-la!
Choro pelo que não fiz.
E pela minha fraqueza
é que sou triste e infeliz.
Perdoa-me, folha seca!
Meus olhos sem força estão
velando e rogando áqueles
que não se levantarão...


Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade
- a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...

sábado, 8 de setembro de 2012

Descontentamento

Não passam mais - Ary dos Santos

Em nome dos nossos braços
em nome das nossas mãos
em nome de quantos passos
deram os nossos irmãos.
Em nome das ferramentas
que nos magoaram os dedos
das torturas das tormentas
das sevícias dos degredos.
Em nome daquele nome
que herdámos dos nossos pais
em nome da sua fome dizemos:
não passam mais!

E em nome dos milénios
de prisão adicionada
em nome de tantos génios
com a voz amordaçada
em nome dos camponeses
com a terra confiscada
em nome dos Portugueses
com a carne estilhaçada
em nome daqueles nomes
escarrados nos tribunais
dizemos que há outros nomes
que não passam nunca mais!

Em nome do que nós temos
em nome do que nós fomos
revolução que fizemos
democracia que somos
em nome da unidade
linda flor da classe operária
em nome da liberdade
flor imensa e proletária
em nome desta vontade
de sermos todos iguais
vamos dizer a verdade
dizendo: não passam mais!

Em nome de quantos corpos
nossos filhos foram feitos.
Em nome de quantos mortos
vivem nos nossos direitos.
Em nome de quantos vivos
dão mais vida à nossa voz
não mais seremos cativos:
O trabalho somos nós.
Por isso tornos enxadas
canetas frezas dedais
são as nossas barricadas
que dizem: não passam mais!

E em nome das conquistas
vindas nos ventos de Abril
reforma agrária controlo
operário no meio fabril
empresas que são do estado
porque o seu dono é o povo
em nome de lado a lado
termos feito um país novo.
Em nome da nossa frente
e dos nossos ideais
diante de toda a gente
dizemos: não passam mais!

Em nome do que passámos
não deixaremos passar
o patrão que ultrapassámos
e que nos quer trespassar.
E por onde a gente passa
nós passamos a palavra:
Cada rua cada praça
é o chão que o povo lavra.
Passaremos adiante
com passo firme e seguro.
O passado é já bastante
vamos passar ao futuro.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Poeta quase Desconhecido

Eterno Conto
Loulé, Julho de 1941 – Fernando Laginha – Poeta Louletano

Pus-me a contar à Vida o triste conto
da minha vida, e , perguntei chorando
porque motivo me andará roubando
as miragens azuis a que me aponto;

e porque fez de mim um velho tonto,
tendo eu vinte anos, que gastei sonhando
por caminhos sem fim, andando…andando
sem nunca ter chegado a qualquer ponto !

- E respondeu-me: – eu não te roubei nada !
Vós é que trilhais mal a própria estrada.
- Há sempre luz e sol onde eu desponto !

Mas – vê lá tu -, desde que o Mundo existe,
a todos tenho ouvido um conto triste
e que afinal, é sempre o mesmo conto.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Livros e Leituras

A propósito de leituras e livros, descobri no facebook esta página coletiva, ilustrada com a participação dos seguidores.
Fotografias, curiosidades, pensamentos, sugestões, tudo à volta dos livros e das leituras.

https://www.facebook.com/improbableslibrairiesimprobablesbibliotheques

                                                    Innovative urban furniture, "Stair Squares", an idea by Mark Reigelman;                                                              little blue tables that fit perfectly onto steps to offer little tables for eating and reading.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poema da minha infância

Quando era criança, gostava tanto deste poema que o memorizei.
António Nobre nasceu no dia 16 de Agosto de 1867. No seu belo e tristíssimo livro "" estava o 

O Somno de João  

O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

O João dorme... Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vae sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os annos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha tambem)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde elle veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais davagar:

Não vá o João, acordar...
 

domingo, 29 de julho de 2012

Londres 2012 - a propósito

Crónica de Olavo Bilac sobre os Jogos Olímpicos na Grécia Antiga, lida aqui
 
Jogos Olímpicos...
Por Olavo Bilac
 
É impossível escrever ou ler essas duas palavras, sem evocar a idade de ouro da humanidade, no berço daquela Grécia divina, cuja misteriosa e indizível saudade arde perpétua, por um milagre psíquico, na alma de todo o homem que pensa. Tal é o prestígio da Helade antiga, que cada um de nós, fechando os olhos, vê reproduzirem-se todo o cenário, toda a gente, toda a história, todos os costumes dessa remotíssima idade.
É que cada um de nós, artistas e poetas, sempre tem dentro da própria alma um pouco da alma da gente do Peloponeso.
Jogos Olímpicos da velha Helade! O céu azul encurvava-se, amoroso e alegre fulgido de sol, sobre a arena que se dilatava, numa imensa elipse cercada de pórticos alvos. Fora da área dos jogos, ficavam as piscinas de mármore. O barulho da água corrente cantava perto. Homens de carne moça, de fortes músculos endurecidos pelo exercício violento – gente sóbria, que se alimentava com um punhado de azeitonas, uma sardinha e um pouco d’água pura, – saíam nus do banho, dando aos beijos do sol os corpos apolíneos, esfregavam-se com almofaças de pelo áspero, untavam a pelo com óleos aromáticos, e em três saltos felinos chegava à arena.
Sobre os degraus de pedra do anfiteatro, a multidão esperava em silêncio, a cabeça descoberta, os pés em sandálias de couro, com uma simples túnica sobre o corpo. 
No centro os juízes, coroados de louro e carvalho, numa altitude de deuses, deixavam cair, arrastados no pó, os largos mantos de púrpura.
E um arauto perto deles esperava o nome do vencedor para o anunciar, pela fanfarra da sua voz retumbante, à assembleia, ao país e à glória. 
Eram primeiro as corridas a pé, derredor do estádio. Os pés firmes batiam a terra numa cadência triunfal. Uma nuvem de poeira dourada cobria, irizando-se ao sol, a massa humana, que voava. Depois, eram as corridas de carros: as leves bigas e as pesadas quadrigas, tiradas por cavalos em pelo, disparavam, num estrilar de patas e ferragens...Depois, a multidão agitava-se, esmagava-se, pisava ansiosa e o exercício do pentatlo começava.   
Firmavam-se os atletas em pontas de pés, encurtavam o corpo apresentando-se para o salto, contraíam todos os músculos; e, de repente, como arcos dobrados que se distendem violentamente, rompiam do solo com a impetuosidade de molas e aço e arrojavam-se gloriosamente para o ar. E essa ascensão entusiasmava a multidão; os espectadores viam ali a subida vitoriosa da raça para a perfeição divina, para o seio do Olimpo, para a glória da imortalidade.
Os escravos traziam então os discos e os dardos. Bíceps de bronze inchavam em braços de mármore. As garrochas finas e agudas partiam, silvando, zunindo e cravam-se fundo no alvo, com uma palpitação em todas as suas plumas; e o rumor claro dos discos entrechocados cantava no ar.
E, subitamente, dois moços, grandes e belos, mediam-se com os olhos, estirando os braços apertados em braços de ouro, e amplexavam-se. Um silêncio ansioso pairava sobre o circo: e nessa nudez completa da multidão, soava alto o resfolego dos lutadores, cujos corpos, estreitamente unidos, oscilavam.  
Os seus ossos estalavam; o chão da arena tremia ao peso do combate de semi-deuses. E quando um deles caía, ofegando sobre o joelho do outro – para o claro azul do céu deslumbrante subia, como o bramir de uma tempestade, a aclamação da assembleia.
O nome do herói, repetido por vinte mil bocas, voava a todos os confins da Grécia, e o vencedor, empunhando um ramo de oliveira, caminhava em triunfo para a sua cidade natal.
 

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Imagem Queimada

Num jogo de palavras que tenta esconder a tristeza, classifico a semana que passou de infernal. O pesadelo por que passou parte da serra algarvia tocou-nos a todos: a uns pelo sofrimento direto da perda do ganha pão, a outros pelo pânico da perda eminente, e a outros ainda pelo pavor das imagens plasmadas nos ecrãs dos pc's ou tv's. 
A todos tocou, também, o esforço quase sobrehumano dos bombeiros, esses heróis dos momentos aflição, mas quase esquecidos o resto do tempo.
Mas, pelos vistos, não tocou a todos. Tirando a mensagem mais ou menos implícita ao cargo do sr. presidente da república e a outra de idêntico teor inócuo do sr. primeiro ministro, mais ninguém com responsabilidades governativas deu a cara, aqui no nosso Algarve. Tirando as imagens do ministro que foi a correr à Madeira ( também ela em grandes e graves apuros) nada mais vimos nem ouvimos. Ficaria certamente bem termos visto junto às chefias coordenativas da Proteção Civil e Bombeiros as caras dos ministros que têm gerido mal as nossas vidas. Ficava-lhes bem. As nossas desilusões acalmavam-se por momentos e vestiam-se de novas ilusões de que talvez eles sempre estivessem mais próximos do que pareciam. Ausentes, pelo menos nas palavras de conforto, na tragédia, esses ministros mostraram efetivamente para quem governam e como governam. A sua imagem ficou mais queimada do que a bela paisagem da serra algarvia. E tal como ela, levará muito tempo a recompor, se é que terá já algum conserto.
da net

domingo, 15 de julho de 2012

Resta a esperança

 Já há alguns dias , largos dias, que andamos com uma espécie de terror branco nas nossas cabeças: temos lugar, não temos? Como vai ser? E as respostas foram dadas no final da semana - umas de forma frontal, em direto, outras de forma mais miserável, em forma de recados indiretos. Quantos de nós estão a sofrer na pele a dispensa de trabalho. Quantos de nós virão a estar no próximo ano. Não abre telejornais, mas devia abrir, ocupados que estão em esmiuçar buscas de conhecimento permanente, fraudulentamente certificadas mas, ao que parece, plenas de legalidade. 
Para muitos de nós, a dedicação, o empenho e o profissionalismo diluiram-se na incerteza de um amanhã. A esperança é tudo o que resta.

Poema de agradecimento à corja    

Obrigado, excelências.
Obrigado por nos destruírem o sonho e a oportunidade
de vivermos felizes e em paz.
Obrigado
pelo exemplo que se esforçam em nos dar
de como é possível viver sem vergonha, sem respeito e sem
dignidade.
Obrigado por nos roubarem. Por não nos perguntarem nada.
Por não nos darem explicações.
Obrigado por se orgulharem de nos tirar
as coisas por que lutámos e às quais temos direito.
Obrigado por nos tirarem até o sono. E a tranquilidade. E a alegria.
Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.
Obrigado pela vossa mediocridade.
E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.
Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.
Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.
Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias
um dia menos interessante que o anterior.
Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.
Obrigado por nos darem em troca quase nada.
Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.
Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade
e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.
E pelo vosso vergonhoso descaramento.
Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,
o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.
Obrigado por serem o que são.
Obrigado por serem como são.
Para que não sejamos também assim.
E para que possamos reconhecer facilmente
quem temos de rejeitar.


Joaquim Pessoa

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Regresso

Anda aqui este meu espaço num tal rame-rame de ausências e pontuais presenças que hoje decidi vir arrumar a casa e fazer o ponto da situação. 
Este ano, cujo sexto mês está no fim, não começou da melhor forma e vai daí que imperativos sérios empurraram, também, alguma inércia da minha parte para atualizar este cantinho que já viu melhores dias.
Agora que as solicitações profissionais e outras já vão estando mais calmas, quero dar outro esticão às letras do meu (des)contentamento. 
Numa breve atualização dos blogues que já não visito há algum tempo, apercebi-me da dimensão deste "algum tempo": uns já não existem, outros com posts de "adeus até ao meu regresso", uns com posts ainda mais desatualizados que os meus e outros, ainda que abertos, mas de amigos virtuais que da lei da morte se foram libertando. E escusado será dizer a tristeza que me deu neste últimos.
Acredito que esta onda das redes sociais deu uns encontrões fortes na atividade blogueira. No princípio aconteceu comigo. Eu também tenho uma página no facebook. Crei-a para reencontrar amigos perdidos no tempo e para esse propósito ainda a mantenho, mas não faço lá mais nada. Aborrece-me que aquele espaço não seja inteiramente meu, aborrece-me que alguém decida por mim o que pôr na barra lateral, aborrece-me que me agrupem os amigos sem me perguntarem, aborrece-me que me desapareça o mural sempre que navego para outro perfil, aborrece-me a conversa pessoal que só o amigo do amigo percebe, aborrece-me a torrente de solicitações para jogos que já tantas vezes disse que não jogava. Ponto final.
Ainda bem que tenho aqui a minha banca porque continuo a achar que estes espaços que criamos, quais páginas de diários ou de blocos de apontamentos, preenchem-nos mais, dão-nos mais liberdade criativa, motivam-nos para a procura do conhecimento, da simples informação ou da manifestação de desagrado. São nossos, pomos e dispomos à nossa vontade, atualizamos quando queremos e embora não haja comentários, sabemos que somos visitados.  

E como o dia de Sâo João está quase a acabar, despeço-me com uma quadra:

Ó meu rico São João
Este ano já me fintaste
Sai-me roto o ordenado
E o subsídio levaste! 


terça-feira, 19 de junho de 2012

Língua Portuguesa

Teolinda Gersão escreveu, no Público de 18/06/2012, uma Declaração de amor à Língua Portuguesa que é um texto sobre o horror que está instalado no ensino do Português. 

Tempo de exames no secundário, os meus netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso, confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que vocês também se divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma coisa para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada, até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo do sujeito.”O Quim está na retrete”: “na retrete” é o predicativo do sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”. Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos, perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade negativa.
No ano passado, se disséssemos “A rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela” era ela,subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no espaço?
A professora também anda aflita. Pelo vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em português,que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho demasiado parvas. Por exemplo,o que acham de adjectivalização deverbal e deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico, classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia, hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto, hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou : a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas, parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens,ou pedaços de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear. Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler, detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção - agora parece que se escreve redação.O meu pai diz que é um disparate, e que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos. Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra, enfiei-a no predicativo do sujeito.
João Abelhudo, 8º ano, turma C (c de c…r…o, setôra, sem ofensa para si, que até é simpática).

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Ler, ler, ler...

The Fantastic Flying Books 
of Mr. Morris Lessmore
Vencedor do Óscar para a melhor curta-metragem de animação



quinta-feira, 5 de abril de 2012

Desabril

Só descontentamento.Tantas coisas me ocorrem, mas todas de puro descontentamento. E desde que li que só em 2000 e picos é que se acabou de pagar uma dívida de estado contraída há cem anos, então aí alguma luz que ainda vislumbrava no túnel apertado do optimismo e confiança, apagou-se por completo.
Quando era criança já ouvia que andava meio mundo a enganar o outro meio, mas agora a coisa refinou-se e basta só um quarto para enganar os restantes três!
 Neste país tão pequeno, a dispersão é cara e inútil, então centre-se e concentre-se tudo. A ordem é para contrair e tudo se vai contraindo, até nos faltar o ar e a esperança.
Num pingpong de palavras, umas off e outras on, os que realmente mandam vão deixando cair pedaços de realidades futuras em declarações parentes do subliminar e os que fingem que mandam apressam-se em explicações e desmentidos que já não convencem.

"Teremos que ver isso. Por agora, por razões constitucionais a duração (dessa medida) é de dois anos, teremos que ver se isto se tornará uma medida permanente ou não", afirmou hoje em Bruxelas Peter Weiss, o chefe adjunto da missão da troika." daqui

"Não existe abusolutamente nada de novo. A suspensão vigorará até ao fim do programa de ajustamento", assegurou Vítor Gaspar." daqui

Está aí Abril. Mas já não tem cor nem flor. Só descontentamento.


quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Palavras soltas

Aqui há uns tempos falei sobre serenidade e da mais valia que ela representava para a perspetiva que temos das coisas que nos cercam. Como gostaria de dizer que, neste início de ano, a serenidade "é um sentimento que me assiste"! Mas não. Estas são mesmo letras de descontentamento. Poderia enumerar as exaltações, as raivas, os pasmos, as incompreensões, mas só iria agravar o sarilho em que o meu entendimento anda enrolado.
Vá lá, respira fundo...
Hoje, o telejornal de uma das televisões dedicou-se a fazer a apologia do esforço imediatamente compensado, do sucesso que cai no colo de qualquer um, das facilidades que saem ao nosso encontro assim como quem não quer a coisa, do desafio aliciante em que a vida se tornou e onde as palavras austeridade, cortes e aumentos não passam de nomes comuns, abstratos, vagamente contáveis e sem adjetivação que lhes confira relevância.  Estamos mal? Bem, uns menos mal, outros nada mal. Outros ainda só pensam em fazer mal.Refaço a reflexão: alguns de nós estão mal, mas são sempre os mesmos e, pelos vistos, são poucos.
Acresce a isto a nova, ou não tão nova assim, classe emergente de comentadores radiotelevisivos, que da sua "zona de conforto" bem remunerada  dão palpites, explicações, prognósticos e afins, e que fazem empalidecer qualquer resquício de serenidade.Para que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior, desejo de o fazer. (Michel de Montaigne, in "Ensaios - Da Vaidade").
Então, deixa-me cá ir à procura de uma poesiazita, que se não me devolve a serenidade pelo menos traz-me calmaria.

(Não é bem isto que me apetece fazer, mas como anseio tanto que a serenidade me assista...)


Meto-me para Dentro

Meto-me para dentro, e fecho a janela.

Trazem o candeeiro e dão as boas noites,
E a minha voz contente dá as boas noites.
Oxalá a minha vida seja sempre isto:
O dia cheio de sol, ou suave de chuva,
Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,
A tarde suave e os ranchos que passam
Fitados com interesse da janela,
O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,
E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,
Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,
Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.
E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme.

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema XLIX"
Heterónimo de Fernando Pessoa