segunda-feira, 30 de março de 2009

Livros e Tempo

A falta de tempo é uma das lamentações dos nossos dias. E nestes últimos dias tenho-me lamentado muito. Em casa, foram mudanças, arrumações, papéis e mais papéis. No trabalho, arrumações, reuniões, papéis e mais papéis. Nesta amálgama sem tempo para o tempo de que mais gosto, que é o de ler, encontrei este texto de Baptista-Bastos.


Estava rodeado de livros. Nascera rodeado de livros.O pai, bibliotecário tomara a mãe de assalto entre livros, no silêncio de uma tarde distantíssima. A mãe era uma das mulheres que anotava, numa secretária junto da janela, os nomes daqueles que consultavam livros.O pai vigiava aqueles que consultavam livros.
Entre livros, a mãe teve dores; entre livros rebentaram-se-lhe as águas; entre livros pariu-o.
Entre livros cresceu, viveu, trabalhou. Não sabia de outra coisa senão de livros.
Os livros começaram a aborrecer-se do homem dos livros. E, um dia, todas as palavras soltaram-se em letras, as letras envolveram-no, as letras comeram-no em silêncio, em silêncio, em silêncio, no silêncio dos livros mudos.


Baptista-Bastos , 1993
Imagem da net

sábado, 21 de março de 2009

Dia da Poesia

Mas o que vou dizer da Poesia? O que vou dizer destas nuvens, deste céu?
Olhar, olhar, olhá-las, olhá-lo, e nada mais.
Compreenderás que um poeta não pode dizer nada da poesia.
Isso fica para os críticos e professores.
Mas nem tu, nem eu, nem poeta algum sabemos o que é a poesia. (Garcia Lorca)

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Tempo de Poesia

Todo o tempo é de poesia

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia

Todo o tempo é de poesia

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.

Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.

Todo o tempo é de poesia.

Desde a arrumação ao caos
à confusão da harmonia.

António Gedeão


Soneto imperfeito da caminhada perfeita

Já não há mordaças,nem ameaças,nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos...Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças,nem ameaças,nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Sidónio Muralha



Afirmas que brigámos

Afirmas que brigámos. Que foi grave.
Que o que dissemos já não tem perdão.
Que vais deixar aí a tua chave
e vais à cave içar o teu malão.

Mas como destrinçar os nossos bens?
Que livro? Que lembrança? Que papel?
Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.
Não te devolvo - é minha - a tua pele.

Achei ali um sonho muito velho,
não sei se o queres levar, já está no fio.
E o teu casaco roto, aquele vermelho
que eu costumo vestir quando está frio?

E a planta que eu comprei e tu regavas?
E o sol que dá no quarto de manhã?
É meu o teu cachorro que eu tratava?
É teu o meu canteiro de hortelã?

A qual de nós pertence este destino?
Este beijo era meu? Ou já não era?
E o que faço das praias que já não vimos?
Das marés que estão lá à nossa espera?

Dividimos ao meio as madrugadas?
E a falésia das tardes de Novembro?
E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?
De quem é esta briga? Não me lembro!


Rosa Lobato Faria

sábado, 14 de março de 2009

José de Guimarães

Hoje, num dos canais de televisão, vi uma reportagem sobre este artista que não conhecia.
Considerado um dos principais artistas plásticos portugueses de Arte Contemporânea, José de Guimarães é autor de uma extensa obra que se reparte pela pintura e escultura, muito valorizada internacionalmente. Está representado em muitas colecções públicas, nomeadamente, entre outros, no Museu Würth, Kunzelsau, Alemanha; Museu de Arte Moderna de Mendoza, Argentina; Museu Real de Arte Moderna, Bruxelas; Museu de Arte, São Paulo, Brasil ; Museu de Dimona, Neguiev, Israel; Fundação Akemi Maeda, Osaka, Japão; Parque Olímpico, Seoul; Museu Nacional de Arte Moderna, Porto.

Porque apreciei, sobretudo, o colorido e a vivacidade das formas, fiz uma breve pesquisa e retirei da net estas imagens de algumas obras suas. A primeira é uma pintura e as duas seguintes, Camões e Pássaros, são esculturas em cartão.




domingo, 8 de março de 2009

João de Deus


João de Deus de Nogueira Ramos, mais conhecido por João de Deus, nasceu em São Bartolomeu de Messines, a 8 de Março de 1830, e faleceu em Lisboa, a 11 de Janeiro de 1896. Advogado e jornalista, foi também um eminente poeta, de lirismo simples e terno, com grande profundidade emocional e muitas vezes melancólico. As suas poesias foram reunidas na colectânea Campo de Flores, publicada em 1893, incluindo-se nesta duas obras anteriores: Flores do Campo e Folhas Soltas. Publicou ainda um Dicionário Prosódico de Portugal e Brasil (1870), e as obras poéticas Ramo de Flores (1869) e Despedidas de Verão (1880). No entanto, foi na área da Educação que João de Deus deixou a sua marca indelével e se distinguiu como pedagogo ao propor, em 1876, um método de ensino da leitura. Assente numa Cartilha Maternal por ele escrita e inspirada em experiências de pedagogos inovadores como Pestalozzi, o método teve grande aceitação popular, o que levou a ser aprovado, em 1878, como o método nacional de aprendizagem da escrita da língua portuguesa.

Em Maio de 1882, foi fundada a Associação de Escolas Móveis, que tinha como finalidade o ensino particular da leitura e da escrita pelo método de João de Deus. Essa entidade originou, em 1908, a Associação de Jardins-Escolas João de Deus, uma Instituição Particular de Solidariedade Social dedicada à educação e à cultura. No seu âmbito funciona o Museu João de Deus e a Escola Superior de Educação João de Deus e múltiplos jardins-escolas.

João de Deus foi considerado o poeta do amor.
O país prestou-lhe as devidas homenagens mesmo ainda em vida e , aquando da sua morte, foi sepultado no Panteão Nacional.
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ADORAÇÃO
Vi o teu rosto lindo,
esse rosto sem par;
contemplei-o de longe, mudo e quedo,
como quem volta de áspero degredo
e vê ao ar subindo
o fumo do seu lar!
Vi esse olhar tocante,
de um fluido sem igual;
suave como lâmpada sagrada,
bem-vindo como a luz da madrugada
que rompe ao navegante
depois do temporal!
Vi esse corpo de ave,
que parece que vai
levado como o Sol ou como a Lua,
sem encontrar beleza igual à sua,
majestoso e suave,
que surpreende e atrai!
Atrai, e não me atrevo
a contemplá-lo bem;
porque espalha o teu rosto uma luz santa,
uma luz que me prende e que me encanta
naquele santo enlevo
de um filho em sua mãe!
Tremo, apenas pressinto
a tua aparição;
e, se me aproximasse mais, bastava
pôr os olhos nos teus, ajoelhava!
Não é amor que eu sinto,
é uma adoração!
Que as asas providentes
do anjo tutelar
te abriguem sempre à sua sombra pura!
A mim basta-me só esta ventura
de ver que me consentes
olhar de longe... olhar!
Fontes: Texto, wikipédia; Imagens, BNdigital

domingo, 1 de março de 2009

Águas de Março

Águas de Março

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

Tom Jobim