domingo, 12 de outubro de 2008

Eu fui Madrinha de Guerra

Isabel Allende diz que “A escrita é para mim uma tentativa desesperada de preservar a memória. Escrevo para que me não vença o esquecimento”.

Todos temos recordações, memórias do passado, antigo ou recente. Há recordações más, situadas em contextos bons e há recordações boas situadas em contextos maus. A recordação que aqui trago enquadra-se neste último tipo. Os anos 60(finais) e 70 preencheram a minha adolescência e juventude. O rock, o flower power, a mini-saia, ocupavam os nossos dias descontraídos enquanto que as baladas, os livros emprestados à socapa e a guerra no ultramar deixavam no ar perguntas sem resposta e desenhavam uma realidade mal compreendida. Todos os rapazes meus conhecidos passavam por um interregno nas suas vidas. Largavam os empregos, as famílias, os amigos e abalavam do cais de Alcântara, aos magotes, para África. O porquê era sempre uma pergunta difícil de responder.


Nessa altura circulava em Portugal uma revista, a “Crónica Feminina”, que, apesar de ser considerada leitura inferior, era lida religiosamente todas as semanas, quer pelas engraçadas tiradas da “D. Licas”, quer pelas novidades da moda, quer pelo foto - folhetim, encaixado nas páginas centrais. Divertíamo-nos com aquilo e isso era parte do nosso pequeno mundo. A última página era uma lista de pedidos de correspondência: Beltrano Sicrano, 1º cabo do RA5, em comissão de serviço na Guiné, deseja corresponder-se com menina dos 17 aos 25 anos, alegre, comunicativa e que goste de música pop. Resposta para o SPM 123456789. Era mais ou menos este o teor do pedido. Entrou na moda, estava na moda.

Então eu respondia a esses gritos de solidão, de liberdade adiada. Durante três ou quatro anos fui madrinha de guerra de uns quantos soldados. Os aerogramas não tinham franquia, pelo que a correspondência circulava com muita assiduidade. Eram palavras simples, descrições do dia a dia, relatos de filmes, letras de canções, poemas, fotografias, postais ilustrados. Enfim, baús cheios de tesouros para quem estava confinado ao mato, à imensidão africana, longe de tudo e de todos.


Havia um dia em que o aerograma trazia a notícia do fim da comissão, o agradecimento profundo pelos bons momentos de leitura e o conforto que as palavras da madrinha desconhecida tinham dado. A vida continuava.
Por duas ou três vezes houve um último aerograma sem resposta do lado de lá. O passar dos dias encarregou-se de apagar a dúvida, um pensamento doloroso.
De todos os afilhados de guerra, só conheci um. Acabada a sua tarefa, voltou para a terra e veio conhecer-me. Trouxe o irmão com quem tinha sido criado e ficou amigo lá de casa. As coisas que ele contava eram um mundo à parte. Ajudou-me a compreender a tal realidade que nos passava um pouco ao lado e trouxe-me algumas respostas às tais perguntas difíceis. Ajudou-me a crescer em consciência. Hoje recordo-lhe o riso franco e aberto. O Tempo, esse insano amigo, levou o resto.
Fotos da net

23 comentários:

Tiago R Cardoso disse...

dar uma palavras de conforto a quem está a passar por momentos terríveis, muito bem.

Nas alturas difíceis é que o ser humano mostra o que é.

Elvira Carvalho disse...

Este post despertou as minhas memórias. Eu também fui madrinha de guerra. Nao tirei nomes de nenhuma revista, mas escrevia religiosamente para alguns primos em Angola e Moçambique, e por pedido deles tornei-me madrinha de guerra de alguns dos seus colegas. Entre o marido, com quem namorava na altura, os primos e os afilhados, cheguei a escrever para dez jovens. Nunca conheci nenhum dos afilhados, e um ficou para sempre no leste de Angola, numa emboscada em que um dos meus primos também ficou entre a vida e a morte, e nunca mais andou, até que morreu há 5 anos. Depois casei e passei a acompanhar o marido. Integrei-me na Cáritas e passei a conhecer a realidade dos musseques africanos. Em Angola, fui apanhada pelo 25 de Abril, e vivi a toda a instabilidade que se seguiu até à independência. Tempos difíceis.
Um abraço e bom Domingo

Isamar disse...

Nunca fui madrinha de guerra de nenhum militar em comissão no ultramar talvez por ser um bocadinho, pouco, mais nova do que a Elvira mas lembro-me de duas ou três vizinhas que escreviam aerogramas para afilhados nesse continente que continua a ser de sonho para mim.Infelizmente, tive um grande amigo cuja vida foi colhida em flor quando combatia na Guiné. Eu era menina,amiga da sua única irmã, e o que presenciei quando a notícia chegou jamais esquecerei. Nunca concordei com a guerra colonial e não vale a pena estar aqui a dissertar sobre o que Salazar deveria ter feito muito antes de 1961.
Águas passadas...
A Crónica Feminina, a Flama, a Plateia...eram as revistas de então. Eu era mais pela Salut Les Copains... Nunca gostei de fotonovelas nem de telenovelas.

Beijinhos, amiga!

Jorge P. Guedes disse...

Magnífico este relato de uma época que vivi com uns aninhos, poucos, mais.
ERA ASSIM MESMO!

Não fui ao ultramar, pois os estudos universitários foram-me permitindo adiamentos de incorporação, até que o 25 de Abril me passou à Reserva Territorial do Continente, assim se chamava ao conjunto de rapazes que acabaram por não "fazer tropa".
Os meus deuses estiveram comigo e livraram-me de ir à guerra.
Mas recordo-me muito bem das "madrinhas de guerra", tantas e tantas com um papael fundamental no equilíbrio daqueles rapazes, que nas matas de África sofriam na pele as agruras e violências de batalhas que não entendiam, nem ninguém!

Abençoadas essas madrinhas!

Um grande abraço, colega e amiga.
Assim se vê o carácter das pessoas.
Bem-Haja!

Miguel disse...

Parabéns pela boa acção ...

Às vezes uma só palavra faz-nos felizes ...

Um BOM FDS!
Bjks da M&M & Cª!

o escriba disse...

Tiago R Cardoso

Dar, nem que seja uma simples palavra, não custa nada e resulta numa boa terapia.

Um abraço
Esperança

o escriba disse...

Elvira

Também a amiga tem uma história de vida, boa ou má, mas certamente repleta de memórias. Devemos viver com elas e não para elas.

bjs
Esperança

o escriba disse...

Isabel

Amiga, o que aqui recordei foi uma coisa boa num contexto mau. Embora não tivesse consciência política sobre as implicações da época em que vivíamos, achava que aqueles rapazes, arrastados para algo que de todo não queriam, mereciam uma palavra de alegria, um conforto.
Claro que também lia outras revistas, mas a Crónica Feminina marcou, decididamente, uma época.

bjinhos
ESperança

o escriba disse...

Jorge

O amigo teve a sorte do adiamento. Sabe que em Matosinhos, uma outra forma alternativa às comissões em África era a temporada de sete anos na pesca do bacalhau. Tive um amigo que lá foi. Num dos seus períodos de defeso (paragem na captura) trouxe uma garrafa dm forma de farol e lá dentro, imagine, vinha uma bebida proibida cá - coca-cola! Foi a primeira vez que bebi tal! Agora até me custa a crer.

Um grande abraço para si
Esperança

o escriba disse...

Miguel

Havia, na época, outras pessoas que faziam outras boas acções. As enfermeiras, por exemplo. Sabia que elas não podiam casar enquanto no exercício da profissão? O Botas dizia que se fossem casadas não se entregavam à profissão como deviam!!! Simplesmente patético!

bjs para a Matilde & Cª
Esperança

vieira calado disse...

Recordações... são recordações...
Cada um tem as suas.
Bjs

o escriba disse...

Vieira Calado

São as memórias que distinguem os homens. Vivemos com elas e nunca para elas.

Um abraço
Esperança

lagartinha disse...

Da guerra do Ultramar só me lembro de na altura do Natal ver os soldados a enviarem mensagens para as famílias. Um deles, foi o meu primo, que apareceu com um ar completamente desgraçado!
Tempos horríveis para eles e famílias!
Odeio a guerra...
Beijinho

o escriba disse...

Ana Lagartinha

Agora imagine quem estava na guerra sem perceber o porquê...
Foi terrível.


bjs
Esperança

Anónimo disse...

Também fui madrinha de guerra. Tinha 15 anos e hoje tenho 60, nunca esqueçi o nome do meu afilhado, Joaquim Tavares Valongo, era barbeiro no serviço militar em Angola. Semanalmente esperava ansiosa pelo aerograma. A revista Crónica era a revista preferida.

Marisa Reis disse...

Adoro ler as histórias dessa época, o meu pai teve umas 20 madrinhas de guerra e a minha mãe teve 13 afilhados... acabaram por se conhecer por causa da guerra e casar, ainda hoje o meu pai não sabe o que aconteceu a algumas das madrinhas, porque eram de África, Méti, eram filhas de colonos portugueses que tinham ido para lá, com o 25 de Abril perdeu o contacto. Se por acaso conhecer alguma Luisa de Almada que tenha tido um afilhado chamado Fernando Martinho da Silva Coelho em Moçimboa da Praia de 1971-1974 por favor avise-me. Obrigada

Marisa Reis disse...

O meu endereço é reis.marisa@gmail.com

Anónimo disse...

Obrigado pelo tempo que deu a quem nas matas só tinha por companhia a G3.
http://sic.sapo.pt/online/video/programas/boa-tarde/2010/9/madrinhas-de-guerra24-09-2010-185710.htm

Manuel disse...

SIM, foram elas que dava a esperança aos soldados daquele tempo, que nos faziam esquecer naquele momento infernal! Elas foram para muitos soldados, como luz que vem ao mundo para iluminar as trevas.

ex-combatente

mManuel disse...

Resposta a MADRINHAS DE GUERRA

Sim, era isso mesmo, é uma verdadeira realidade! Citado “ essa era mesmo uma forma de deixar de pensar em guerra… sempre com a ânsia de receber quatro letras da sua “madrinha”.
Com a chegada do correio os corações aceleravam e as que escreviam para também fugir a solidão, esta terminava com gestos ansiosos por abrir a carta e poder lê-la. “ Era uma forma de esquecer e vencer a fúria dos homens na guerra. Porque Deus se manifesta ao homem através do homem. Porque Deus manifestava-se sempre em mim a través desta mulher " MADRINHA DE GUERRA" e me dizia: Não temas porque eu estou sempre contigo. Quando eu entrei no cemitério de Nambuangogo e entre dez sepultura aberta preparadas para enterrar os que caíam em combate. E cheguei-me a beira duma destas campas a chorar, soluçando dizendo na voz do silêncio será esta a minha sepultura a minha última morada. Será que nunca mais na vida os meus pais e meus irmãos, nunca mais me vão ver! e ficarei para sempre esquecido na historia. Odeio a guerra! E ela me disse, aquela voz que vinha de dentro de mim e me dizia não temas porque eu estou sempre contigo. Eu próprio que não sou nada religioso, mas tenho a minha FéA guerra faz parte da ganância e da genuidade dos homens.Dois dias depois quando saimos de Namboangogo em direcção a Luanda, dez quilómetros depois eu ia no Jipäo e enquanto os meus camaradas iam na brincadeira uns com os outros, eu ia com toda a minha precaução e a atenção, porque também a nossa comissão já tinha acabado ; aplicando tudo o que eu tinha aprendido nas tácticas antigarrilhas. Quando ouvi os primeiros tiros do chefe dos guerrilheiros a dar o sinal para eles fazerem fogo sobre nós. imediatamente saltei da viatura para fora e rolei para a valeta. Enquanto os meus colegas ficaram pasmados ao verem me no chão alguns ainda começaram a rirem, talvez no gozo, sei lá?! eu gritava saltem para o chão!? Só depois do tiroteio intenso é que eles se aperceberam que estávamos debaixo de fogo então saltaram para o chão… aquela fracção de segundos podia ser fatal para todos eles. Nós já estávamos no fim da nossa comissão se não morremos até aqui, também não queria que ninguém agora morresse, se todos morressem e se eu sobrevivesse sozinho no meio daquela confusão, era certamente liquidado pelo o inimigo, porque talvez eu não conseguisse fazer frente ao numero elevado de inimigo, certeza eu não ia sobreviver porque a união faz a forca. Sem união não á nada a fazer.Mas eu ouvia sempre a vóz da minha madrinha de Guerra que me dizia: Carlos não tenhas medo porque eu estou sempre contigo, ela näo me mentiu; ela salvou-me a mim e ao meu camarada de arma. A Vida se manifesta em mim por uma inteligência viva e crescente. A Vida perfeita me dá uma disposição afectuosa e boa. A Vida mantém meu corpo sadio e vigoroso. Minha consciência da Vida omnipresente cresce dia a dia. Abandono diariamente a vida velha para receber a vida nova. Amo a Forca do Universo em todas as suas manifestações. Vivo na perfeita harmonia da Unidade Suprema. Eu casei com a minha madrinha de Guerra, que já dura 46 anos de casamento.

mManuel disse...

Resposta a MADRINHAS DE GUERRA

Sim, era isso mesmo, é uma verdadeira realidade! Citado “ essa era mesmo uma forma de deixar de pensar em guerra… sempre com a ânsia de receber quatro letras da sua “madrinha”.
Com a chegada do correio os corações aceleravam e as que escreviam para também fugir a solidão, esta terminava com gestos ansiosos por abrir a carta e poder lê-la. “ Era uma forma de esquecer e vencer a fúria dos homens na guerra. Porque Deus se manifesta ao homem através do homem. Porque Deus manifestava-se sempre em mim a través desta mulher " MADRINHA DE GUERRA" e me dizia: Não temas porque eu estou sempre contigo. Quando eu entrei no cemitério de Nambuangogo e entre dez sepultura aberta preparadas para enterrar os que caíam em combate. E cheguei-me a beira duma destas campas a chorar, soluçando dizendo na voz do silêncio será esta a minha sepultura a minha última morada. Será que nunca mais na vida os meus pais e meus irmãos, nunca mais me vão ver! e ficarei para sempre esquecido na historia. Odeio a guerra! E ela me disse, aquela voz que vinha de dentro de mim e me dizia não temas porque eu estou sempre contigo. Eu próprio que não sou nada religioso, mas tenho a minha FéA guerra faz parte da ganância e da genuidade dos homens.Dois dias depois quando saimos de Namboangogo em direcção a Luanda, dez quilómetros depois eu ia no Jipäo e enquanto os meus camaradas iam na brincadeira uns com os outros, eu ia com toda a minha precaução e a atenção, porque também a nossa comissão já tinha acabado ; aplicando tudo o que eu tinha aprendido nas tácticas antigarrilhas. Quando ouvi os primeiros tiros do chefe dos guerrilheiros a dar o sinal para eles fazerem fogo sobre nós. imediatamente saltei da viatura para fora e rolei para a valeta. Enquanto os meus colegas ficaram pasmados ao verem me no chão alguns ainda começaram a rirem, talvez no gozo, sei lá?! eu gritava saltem para o chão!? Só depois do tiroteio intenso é que eles se aperceberam que estávamos debaixo de fogo então saltaram para o chão… aquela fracção de segundos podia ser fatal para todos eles. Nós já estávamos no fim da nossa comissão se não morremos até aqui, também não queria que ninguém agora morresse, se todos morressem e se eu sobrevivesse sozinho no meio daquela confusão, era certamente liquidado pelo o inimigo, porque talvez eu não conseguisse fazer frente ao numero elevado de inimigo, certeza eu não ia sobreviver porque a união faz a forca. Sem união não á nada a fazer.Mas eu ouvia sempre a vóz da minha madrinha de Guerra que me dizia: Carlos não tenhas medo porque eu estou sempre contigo, ela näo me mentiu; ela salvou-me a mim e ao meu camarada de arma. A Vida se manifesta em mim por uma inteligência viva e crescente. A Vida perfeita me dá uma disposição afectuosa e boa. A Vida mantém meu corpo sadio e vigoroso. Minha consciência da Vida omnipresente cresce dia a dia. Abandono diariamente a vida velha para receber a vida nova. Amo a Forca do Universo em todas as suas manifestações. Vivo na perfeita harmonia da Unidade Suprema. Eu casei com a minha madrinha de Guerra, que já dura 46 anos de casamento.

Anónimo disse...

Alguns poemas sobre as Madrinhas.
http://www.youtube.com/watch?v=YHJAY_uVUt8

A todos "afilhados" e "Madrinhas" que aqui deixam o seu testemunho lembro que existe neste momento um movimento para a construção de um monumento à familia militar. E um espaço no Facebook sobre o tem: Madrinhas de Guerra.
A autora do blogue obrigado por ter dado o seu tempo.

M. disse...

Olá a todos,

O meu nome é Mariana Gomes e estou a contactá-los porque temos um projecto que tem como um dos seus objectivos a manutenção e o arquivo destas memórias, para que se conheçam as experiências de quem as viveu directamente.

O nosso projecto procura cartas da guerra colonial para serem disponibilizadas. Apenas fazemos o registo de imagem e transcrevemos o seu conteúdo, suprimindo quaisquer dados privados relativos ao autor ou ao destinatário.

Não gostariam de participar e dar a conhecer este passado guardado em baús, caixas de sapatos e armários por todo o nosso país?

Vejam o nosso site em: http://alfclul.clul.pt/cards-fly

Contactem-nos para fly@clul.ul.pt.

Muito obrigada,
Mariana Gomes