sábado, 26 de julho de 2008

Tempo de férias



Maluda, Olhão



Bati à porta levemente. Chamei.
Aguardei, olhando para as flores miudinhas que compunham os vasos postados em fila, junto à parede. Um carreiro de formigas atarefadas desviou-me a atenção. Nenhuma caiu ao Tejo. Continuavam carreirosamente, de mãos vazias, umas, de costas carregadas, outras.
Voltei-me para a porta. Abri-a devagarinho e chamei. Ninguém respondeu. Entrei.
O corredor, vivamente iluminado pela janela do fundo, estava deserto. Perdidos na passadeira verde, dois ou três brinquedos jaziam, estáticos e desorientados.
A porta escancarada da primeira sala convidou-me a espreitar. Livros arrumados em cima da mesa larga faziam parceria com folhas de papel, cheios de letras, esquemas, grelhas. Trabalho acabado e pronto a encher algumas das pastas que se alinhavam nas prateleiras encostadas à parede da janela. No sofá comprido, três almofadas descansavam languidamente umas nas outras, contemplando, à sua frente, as estantes onde se apertavam as lombadas de livros de poesia e de histórias de velhos que liam romances de amor. Cheguei-me à janela e os meus olhos baloiçaram no mar que traçava uma linha azul para lá das casas.
Voltei ao corredor. O silêncio abria alas ao restolhar das folhas das árvores e ao cantar das cigarras.
Um vulto saltou-me aos pés. Uf! Era um gato! Listrado, de grandes bigodes e rabo farfalhudo. Viera da porta ao lado. Ena! Sala de gente viajada! Fotografias, livros, mais fotografias. A um canto, um armário cheio de música e ao lado uma pilha de revistas. Pendurado na parede oposta, um saxofone amarelo encerrava o testemunho silencioso de noites carregadas de sons cálidos. A cortina que cobria o janelão levantou-se timidamente. Desviei-a e olhei lá para fora. Era o outro lado da cidade. A torre da igreja, os edifícios antigos, alguns telhados.
Saí daquela contemplação quando o sol me chapou no rosto toda a sua força.
Mais silêncio, mais folhagem, mais cigarras. Decididamente não havia vivalma.
Ainda pensei deixar recado. Um daqueles papelinhos coloridos de que frequentemente nos socorremos quando a nossa memória deixa de ter espaço. Mas não. Ninguém vai ler. E quando regressarem, o tempo já diluiu as letras e enrolou o papel.
Dirigi-me à porta da rua. Olhei para as flores dos vasos e pareceram-me mais miudinhas. As formigas do carreiro tinham mudado de direcção. O restolhar das folhas e o canto das cigarras abriam, agora, alas ao silêncio do calor abrasador da tarde. Afinal foi tudo de férias.
Saí e fechei a porta.

4 comentários:

rendadebilros disse...

Boas férias!!
Deixei-te um desafio no meu canto a desafiar a eternidade!!!
Beijos.

o escriba disse...

rendadebilros

já fui lá ao teu cantinho ver qual era o desafio e confesso que fiquei um bocado arrepiada!
Não estou muito familiarizada com isto dos desafios, embora já tenha visto alguns.
Não leves a mal, mas acho que não o vou passar a ninguém por dois motivos: o primeiro é que não tenho ainda tantos contactos próximos a quem possa propôr; e o segundo é que...foi tudo para férias!
De qualquer modo vou aceitar o desafio!

Boas férias!
bjs
Esperança

Isamar disse...

Esperança

Um texto lindíssimo feito por mulher letrada, que lê muito, ouve boa música, exímia comunicadora. Pensei-te de férias mas lembrei-me depois que estás pelo teu Algarve, à beira da Ria Formosa, a tomar uns banhos e talvez a cantarolar.
Vou reler o texto, acabado o comentário. As formigas não deveriam encarreirar à beira do Gilão ou do Guadiana?
Eu encarreirei por uma certa ruralidade de que o texto está imbuído, ouvi as cigarras, acariciei o gato que ronronava no tapete e saí em direcção à serra. Continuarei montanheira até morrer.É um estado de espírito que só têm aqueles que nasceram entre estevas e rosmaninhos.

Beijinhos

o escriba disse...

Isabel

Era bom que Olhão ficasse mesmo à beirinha da praia, mas não fica. Assim tenho o mar ao pé da porta mas não mergulho os pés na areia!Nas manhãs de férias vou para a Fuseta e nas tardes preguiço aqui pelo sofá.
Gosto de campo, de árvores e rios, mas é o cheiro de mar e maresia que me enche a alma! Fui criada em Matosinhos e a minha casa fica uma rua acima da praia e, ora! sabes como é, fosse verão ou inverno lá estava eu nos bocadinhos todos.
Amiga, tu tens o campo entranhado e eu tenho o mar!
Ainda bem que gostaste do meu textozito. Foi feito a pensar nos cantos que visito e onde sou bem recebida!

Bjinhos mtos
Esperança