sábado, 12 de julho de 2008

Quando a notícia não o é

Gosto de ler jornais. É interessante ver os diversos e diferentes tratamentos que as notícias têm consoante o tipo de jornal onde aparecem. É interessante ler uma notícia “fresquinha” hoje de manhã e, ao meio dia, descobrirmos nos telejornais que houve desenvolvimentos tais que nada daquilo que se leu é assim. Mas é bom. Retemos o que nos interessa e o resto é lido só “as gordas” ou simplesmente olhado em diagonal.
As notícias renovam-se, porque todos os dias acontecem coisas, boas, más, horríveis.
No entanto há notícias que se ancoram nas páginas dos jornais e são dissecadas até à exaustão. Há especialistas nestas. Não há número que não volte à carga com mais do mesmo.
Nestes últimos meses, tem saltado para a ribalta das linhas jornalísticas o caso amoroso entre um certo futebolista que mesmo a dormir ganha dinheiro e uma menina que, à falta de talentos artísticos, faz render os seus talentos anatómicos. As notícias sucedem-se a um ritmo alucinante, dele e dela.
Ontem (ou foi hoje?) abri um dos jornais a que deitei a mão e pasmei por ver uma página inteira dedicada à referida menina que… tinha torcido um pé!
Oh céus! Que horror! E assim me veio à cabeça o texto de Eça de Queiroz, escrito há precisamente 101 anos, mas tão actual quanto o era nessa altura, e por isso alvo da pena desse grande escritor e jornalista.
Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração! Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa, outras senhoras costuravam.Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a terra.
Ela lia as catástrofes, lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java, um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas …». As agulhas atentas picavam os estrofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio transbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!». A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada pelo oiro da luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas…
Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um oh de dolorida surpresa. No sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilado causara três mortes, onze ferimentos…». Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça:
– Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvoroçou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume.

Eça de Queirós – Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907)

6 comentários:

Jorge P. Guedes disse...

Muito bem enquadrada a descrição do Eça com a situação do pezinho da menina Gallardo, a provar que o balofo e o ridículo não conhecem épocas. São árvores de folhagem perene.

Um abraço e bom fim-de-semana.

o escriba disse...

Jorge

Como diz,e muito bem,"são árvores de folha perene", pois adubo não falta!
Bom fim-de-semana.

Um abraço
Esperança

Isamar disse...

Hoje, ontem e amanhã ( não gosto de futurologia mas atrevo-me a adentrá-la)continuamos iguais ao que sempre fomos. O que nos é conhecido, o que está à nossa beira é alvo da nossa atenção, da nossa curiosidade, da nossa preocupação.E o resto? Continuamos a ser tão pequeninos? Um dia disseram-me que a notícia tinha de ser verdadeira, actual e de interesse geral. Aqui, neste ponto, continua a falhar-se muito.
Um excelente post, Esperança!

Bjinhos

Bom domingo!

o escriba disse...

Isabel

Também conheço essa definição de "verdadeira, actual e de interesse geral", mas acho que cada vez mais ela, a notícia, vai perdendo a sua natureza. E então quanto à televisão, nem se fala.A maior parte das coisas que vemos na Tv não as podemos dar como certas. Conheces aquele filme "O Candidato" ? Sem tirar nem pôr.

bjinhos
Esperança

lagartinha disse...

Não mudámos nada, não é?
Desde que vi interromper uma entrevista politica para ir em directo ao aeroporto ver a chegada de um treinador...
Um beijinho

o escriba disse...

Ana Lagartinha

Ora a menina deu mesmo no ponto!...
O que é verdadeiro? O que é actual? O que é do interesse geral?
Quando as notícias dão conta dos liftings da "ricas", dos anúncios de namoro de um velhote... ou do nascimento de gémeos a casal de gente rica e famosa... Tal vai o mundo!

bjinhos
Esperança