segunda-feira, 28 de abril de 2008

Letra R - Recordações


A propósito de uma conversa solta, veio à baila o nome de Florbela Espanca. Das suas palavras poético-depressivas sempre gostei. Mas não é delas que vou falar agora. É do que temos em comum. Florbela viveu m período da sua vida no Algarve, mais propriamente em Quelfes, concelho de Olhão. E viveu também em Matosinhos, onde viria a morrer em 1930, na Rua 1º de Dezembro. Olhão é a cidade onde nasci, Matosinhos é a cidade onde cresci, estudei e e vivi parte da minha juventude.
Matosinhos do meu tempo era uma vila mexida, barulhenta, alegre, de pescadores , de barcos a entrar e a sair do porto, de gente fina, de grupos de estudantes a caminho do liceu ou da escola técnica, de serviços, de lojas, de banhistas, de eléctricos amarelos e autocarros verdes.
Manhã cedo, as leiteiras e as padeiras abasteciam, no domicílo das clientes, o leite dos catraios e o pão: moletes, regueifa, pão quadro, broa.
As pessoas acudiam às procissões, do Senhor de Matosinhos ou do Mártir S.Sebastião e dos meninos e meninas da comunhão solene, às feiras, às rifas, nome dado aos bailes de rua pelos santos populares. Para todas as festas preparava-se cuidadosamente a roupa a estrear. “Vou mandar fazer um fato para o Senhor de Matosinhos”, “ Este tecido é para uma blusa para o Mártir”, dizia-se num sentido ambíguo, como se os santos partilhassem essa vaidade material de parecer bem!
Passeava-se, ao domingo, pela marginal até à Foz ou ia-se a Leça pela ponte móvel. No parque Basílio Teles ouvia-se a banda no seu coreto e corríamos à procura do homem dos caladinhos e línguas da sogra. À noite os passos guiavam-nos até ao Cais do Sul para ver as traineiras sairem para o mar na hora de lei – 10 horas.
Os Invernos eram frios e chuvosos. As pessoas recolhiam cedo a casa. 5 horas e a tarde já dera lugar à noite enfiada no seu manto soturno. Os vendedores de castanhas cozidas lançavam a sua sombra nas esquinas e o fumo que saía das cestas à tiracolo confundia-se com o nevoeiro espesso , anunciado pela roca do farol.
No verão, as nortadas faziam voar os guarda-sóis e obrigavam a correr o taipal das barracas da praia. A canalha brincava até tarde. Corria-se a rua atrás dos cabazinhos, caricas forradas de casca de laranja. Corria-se a rua equilibrando o arco de ferro, às vezes o aro de uma roda de bicicleta. Os mais atrevidos penduravam-se nas carroçarias das camionetas dos armazéns de peixe. Na rua do Sul, as poveiras jogavam ao mata.
Quando havia algum naufrágio, o ar tornava-se pesado. O sentimento de perda atingia toda a gente, como se de familiares directos se tratasse. Mas o refrão “Matosinhos, Matosinhos, Terra de Lobos do Mar…” trazia todos de volta. Umas vezes perdia-se mas outras vezes ganhava-se a luta contra as águas do Oceano.
Era esta a vila da minha infância. Certamente tudo isto se perdeu. Mas vieram outras. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança, …todo o mundo é composto de mudança...
Às vezes penso que as minhas recordações também mudaram.

2 comentários:

rendadebilros disse...

Também tenho uma dessas fotos, a que representa a dor e a angústia das mulheres que gritam a espera...

Cara colega, é um prazer cruzar-me consigo!
Beijos.

o escriba disse...

Obrigada pela simpatia, renda de bilros.
Acredite que nada nesta vida acontece por acaso! O prazer é todo meu!

beijos
Esperança