quarta-feira, 30 de abril de 2008

Rios e Flores

Na semana passada acabei de ler o Rio das Flores de Miguel Sousa Tavares. Gostei. Gostei muito. A sua linguagem clara activou-me todos os sentidos. A acção passou na tela da minha imaginação ao ritmo das paixões, encontros e desencontros das personagens. Os dramas pessoais de cada uma destas prenderam-me de tal modo que dei por mim a torcer por este ou aquele, pelo seu sucesso ou insucesso. O cenário da guerra civil espanhola e do Brasil dá-lhe um enquadramento de verosimilhança tal que me esqueci que a história era ficção.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Letra R - Recordações


A propósito de uma conversa solta, veio à baila o nome de Florbela Espanca. Das suas palavras poético-depressivas sempre gostei. Mas não é delas que vou falar agora. É do que temos em comum. Florbela viveu m período da sua vida no Algarve, mais propriamente em Quelfes, concelho de Olhão. E viveu também em Matosinhos, onde viria a morrer em 1930, na Rua 1º de Dezembro. Olhão é a cidade onde nasci, Matosinhos é a cidade onde cresci, estudei e e vivi parte da minha juventude.
Matosinhos do meu tempo era uma vila mexida, barulhenta, alegre, de pescadores , de barcos a entrar e a sair do porto, de gente fina, de grupos de estudantes a caminho do liceu ou da escola técnica, de serviços, de lojas, de banhistas, de eléctricos amarelos e autocarros verdes.
Manhã cedo, as leiteiras e as padeiras abasteciam, no domicílo das clientes, o leite dos catraios e o pão: moletes, regueifa, pão quadro, broa.
As pessoas acudiam às procissões, do Senhor de Matosinhos ou do Mártir S.Sebastião e dos meninos e meninas da comunhão solene, às feiras, às rifas, nome dado aos bailes de rua pelos santos populares. Para todas as festas preparava-se cuidadosamente a roupa a estrear. “Vou mandar fazer um fato para o Senhor de Matosinhos”, “ Este tecido é para uma blusa para o Mártir”, dizia-se num sentido ambíguo, como se os santos partilhassem essa vaidade material de parecer bem!
Passeava-se, ao domingo, pela marginal até à Foz ou ia-se a Leça pela ponte móvel. No parque Basílio Teles ouvia-se a banda no seu coreto e corríamos à procura do homem dos caladinhos e línguas da sogra. À noite os passos guiavam-nos até ao Cais do Sul para ver as traineiras sairem para o mar na hora de lei – 10 horas.
Os Invernos eram frios e chuvosos. As pessoas recolhiam cedo a casa. 5 horas e a tarde já dera lugar à noite enfiada no seu manto soturno. Os vendedores de castanhas cozidas lançavam a sua sombra nas esquinas e o fumo que saía das cestas à tiracolo confundia-se com o nevoeiro espesso , anunciado pela roca do farol.
No verão, as nortadas faziam voar os guarda-sóis e obrigavam a correr o taipal das barracas da praia. A canalha brincava até tarde. Corria-se a rua atrás dos cabazinhos, caricas forradas de casca de laranja. Corria-se a rua equilibrando o arco de ferro, às vezes o aro de uma roda de bicicleta. Os mais atrevidos penduravam-se nas carroçarias das camionetas dos armazéns de peixe. Na rua do Sul, as poveiras jogavam ao mata.
Quando havia algum naufrágio, o ar tornava-se pesado. O sentimento de perda atingia toda a gente, como se de familiares directos se tratasse. Mas o refrão “Matosinhos, Matosinhos, Terra de Lobos do Mar…” trazia todos de volta. Umas vezes perdia-se mas outras vezes ganhava-se a luta contra as águas do Oceano.
Era esta a vila da minha infância. Certamente tudo isto se perdeu. Mas vieram outras. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança, …todo o mundo é composto de mudança...
Às vezes penso que as minhas recordações também mudaram.

domingo, 27 de abril de 2008

Palavras bem Cozinhadas


Do meu amigo Luís G recebi esta receita de um prato especial, que não tem contra-indicações e é facilmente adaptável às circunstâncias.


Receita do Bolo da Vida


Um monte de Tranquilidade
Algumas colheres de Esperança
Duas pitadas de Paciência
Carinho, muito Carinho!

Misture os ingredientes,
leve ao forno pre-aquecido até dourar!


Dica:Se acontecer de queimar, não se apavore. O bolo da vida só chamusca por fora, por dentro não se estraga.Então, se passar do ponto, remova a camada externa, queimada,e cubra generosamente com Amizade.Está pronto o bolo mais gostoso do Mundo!

Ser ou não ....ir

Gostei deste texto de João Ubaldo Ribeiro, escritor brasileiro, sobre o uso da língua portuguesa.
Agora que está na berra o Acordo Ortográfico, até que vem a propósito.

O Verbo "For"

João Ubaldo Ribeiro

Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
— Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
— "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a platéia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
— Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
— As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
— Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
— Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
— Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
— Esse "for" aí, que verbo é esse?
Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
— Verbo for.
— Verbo o quê?
— Verbo for.
— Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
— Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.

in "O Globo", 13 de Setembro de 1998; também em "O Conselheiro Come", Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2000, pág. 20 — 13/10/2007

Beijos

Para os Membros
do
Clube dos Leitores sem Tempo
Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill
* In No Reino da Dinamarca, 1958

Tertúlia

A tertúlia sobre a Isabel Allende correu bem.
As nossas tertúlias são sempre de cariz gastronómico-literárias. Eu explico. Escolhe-se o autor ou o tema e contextualiza-se o jantar. O grande "chef-de-cuisine" é o Luís G. , assistido sabiamente pela JovinaT.. O Zé João e a Sandra P. coadjuvam os trabalhos.
A sessão sobre o Amin Mallouf apresentou-nos os sabores exóticos do norte de África. A tertúlia do Jorge Amado foi tropicalíssima, onde não faltou o feijão preto e a caipirinha. O tema "Mulher ou Chocolate" recheou-nos os olhos e a barriga com sobremesas do tipo "mas onde é que eles foram desencantar isto?". Agora com a Isabel Allende foi a América Latina no seu melhor. Desde a entrada à sobremesa estava tudo, como diria a consagrada autora, "para não cair no esquecimento". Os meus infundados receios de fiasco não passaram de isso mesmo, de infundados.
Não resisto a transcrever uma das mensagens que me foi entregue ( que me desculpem todos os outros, cujas palavras também me tocaram muito): hoje aprendi que: todos temos histórias "de amor e de sombra" em "planos infinitos" com "retratos a sépia" das nossas vidas. Agora sei que sou "uma fiçha da fortuna" no "meu país inventado" onde cabem todos vós e onde nunca me sinto só.
Obrigada colegas!

O Cravo


Até o cravo, dizem os/as floristas, caiu em desuso! Mas o cravo-símbolo, o cravo-bandeira, não irá cair nunca. O cravo continua a ser um grito.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

25 de Abril

Hoje foi feriado. Digo "foi" porque daqui a mais uma hora mais coisa menos coisa já não é. Hoje foi 25 de Abril. Digo "foi" porque o ideal é passado, porque a liberdade mudou de forma, porque o que se esperou não "chegou a chegar". O dia da revolução não passa hoje de um conjunto de discursos.
Estou a escrever e a ouvir na tv as palavras musicadas de uma época de luta, de finca-pé e de esperança. A alma renova-se mas ai que os olhos resistem a um riacho salgado que quer furar por entre recordações de músicas ouvidas às escondidas, de letras aprendidas e escritas em papéis rasconsos, dissimulados dentro dos livros do liceu. "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar", "Canta, canta como uma ave ou um rio, dá o teu braço aos que querem sonhar", "Ei-los que partem , novos e velhos, coração triste", "A cantiga é uma arma, eu não sabia", "Pare, escute e olhe, não hesite em avançar", "Só assim será poema, só assim terá razão, só assim te vale a pena, passá-lo de mão em mão". Lembro as palavras de meu pai que, embora pouco ou nada politizado, dizia "isto tem que mudar! Tem que haver gente nova a mandar nisto!". Dou comigo a pensar, no presente, quase na mesma coisa. Houve erros que não se emendaram, promessas que não foram cumpridas, interesses que se sobrepuseram. Dou comigo a pensar se sou mesmo livre.
Tanto que eu gostaria de não viver só de recordações! Tanto que eu gostaria que esta praia tivesse sido alcançada por um mar diferente, um mar sem "simplexes", sem normativos made in outra parte, sem novas oportunidades com nome, sem elos enfraquecidos.
Mas no saldo destes trinta e quatro feriados, dos discursos floriados e absurdos, dos vinte e cinco de abril de cada ano, dou comigo a pensar que não me calo e que não vou deixar passar este riacho que teima em esgueirar-se pelos meus olhos.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Isabel Allende


A semana está a meio e o trabalho ainda não está arrumado. O sol do meu Algarve tarda em sacudir de si as cortinas que este tempo desencontrado tem pendurado por aí e a minha disposição não tem sido das melhores. Hoje, então, estou que "não me recomendo". Esta frase aqui do lado sobre os amigos é capaz de ter razão, sim senhor. Amiga, amiga, não direi, mas boa companheira de viagens à memória das coisa tem sido a Isabel Allende, que vou apresentar na próxima tertúlia. É uma escritora de quem gosto muito. As personagens, que ela compõe como um puzzle a partir das pessoas que ela conhece, protagonizam histórias que bem podiam ser as nossas e têm percursos de vida onde se misturam o amor, a tragédia, a coragem e a esperança.
Numa entrevista a Celia Correas Zapata, Isabel diz "a escrita é para mim uma tentativa desesperada de preservar a memória. Escrevo para que me não vença o esquecimento". De facto, quem tem este dom da escrita tem a arma ideal para rasgar o véu espesso que envolve as lembranças do que fizemos, do que fomos e dos que conhecemos. Lembrarmo-nos de coisas passadas funciona, muitas vezes, como terapia para as mazelas do nosso presente. O exemplo dela mais concreto é o livro "Paula", escrito durante a terrível doença da filha e que a ajudou a superar a dor moral da perda definitiva. Para mim, é um dos mais bonitos que ela escreveu.
Bem, mas não quero ficar melancólica, até porque estou a ouvir uma musiquinha de que gosto muito e a Isabel Allende também tem aspectos cómicos nas suas obras. É a magia das suas palavras: tão depressa nos comovemos com as tragédias como nos rimos a bandeiras despegadas com as situações hilariantes em que algumas personagens se vêm envolvidas. Tal e qual a vida!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Letra C - Começo (parte II)

Continuo na letra C. O começo é sempre um pouco arreliador.
Bonitinho mas de letra cheia, é o que pretendo.

domingo, 20 de abril de 2008

Letra C - Começo

Lanço-me, agora, nestas letras dos blogs. Passeei por muitos, detive-me, qual montra de loja, em uns quantos, li alguns exaustivamente. Encantei-me em letras coloridas, agarradas a imagens delirantes e hilariantes. Por fim pensei "e porque não?". É como um diário, mas sem capa ou cadeado, e também ninguém irá ler (por pressuposto). Somemos, pois, as letras.